Correio de Carajás

Mãe detalha drama vivido no HMI e diz: “só pensava em voltar pra casa viva”

Carol fala sobre a falta de médico na maternidade, descaso com a saúde pública e a violência obstétrica sofrida na hora de parir

Caroline de Paula abre o coração e se emociona ao contar sua experiência traumática no HMI – Foto: Evangelista Rocha

Violência obstétrica é toda ação realizada durante a assistência a uma gestante ou puérpera, que desrespeite a sua autonomia e seu corpo sem a sua aceitação, podendo ser física, verbal ou sexual.

De acordo com dados mais recentes das Nações Unidas, uma em cada quatro mulheres já sofreram violência obstétrica no Brasil. A marabaense Caroline de Paula Ramalho Nascimento, de 29 anos, faz parte dessa estatística e é um dessas vítimas.

Em novembro de 2022, ao dar entrada no Hospital Materno Infantil de Marabá para ter Aya, sua segunda filha, Carol teve de ouvir do médico anestesista que ela era muito gorda e que a agulha não iria passar nas suas costas. “A gente vai fazer uma bariátrica ou uma cesariana?” questionou o médico naquele momento.

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Ao Correio de Carajás, Caroline conta detalhes do drama vivido desde sua entrada na maternidade até o momento em que teve que retornar, dias depois, por conta de uma mastite adquirida por causa do abalo psicológico sofrido na sala de parto.

“No final da gestação comecei a sentir muitas dores. Fui ao HMI e a doutora que me atendeu viu todo meu caso e conseguimos cuidar para que eu fosse atendida na semana seguinte. Foi um ótimo atendimento. Como agendado, voltei ao hospital. Estava com a pressão alta e quando cheguei, às 11 horas da manhã, as enfermeiras já informaram na triagem que só tinha um médico em todo o hospital. Nós ficamos até as 19 horas sem atendimento. Logo depois chegou só um médico e o hospital lotado, ambulâncias chegando, mamães com o parto acontecendo lá. Era uma sensação de que a equipe de enfermeiros estava tentando ver quem eles iriam salvar e colocar na frente pra ser atendido primeiro”, relembra.

Carol conta que o médico que chegou a examinou e já fez sua internação para a cesariana acontecer por conta da pré-eclampse. Contudo, horas depois, o mesmo médico informou que não iria conseguir fazer o parto dela porque estava sozinho e o hospital lotado.

No dia seguinte, por volta das 11 horas da manhã, Carol foi levada para a sala de parto e teve a companhia do seu esposo que foi “barrado” pelo médico anestesista. Ele pediu para que o marido aguardasse do lado de fora enquanto ele aplicava a anestesia.

“A gente vai fazer uma bariátrica ou uma cesariana?”

“Eu estava muito calma. Mas, o anestesista logo que chegou soltou a frase ‘o que vamos fazer com essa mala?’. Ele falou isso para a enfermeira que estava na sala. Ele repetiu ‘e essa mala, a gente vai despachar pra onde?’. Enquanto isso eu estava sentando e percebi que ele estava falando de mim. Fiquei de costas, na posição para levar a anestesia, e aí ele fez a primeira perfuração e falou ‘essa mulher é muito grande, nenhuma agulha passa nas costas dela. Ela é muito gorda. A gente vai fazer uma bariátrica ou uma cesariana?’ aí foi quando eu entendi que a mala que ele estava falando se tratava de mim”, relembra Carol, entre lágrimas durante a entrevista concedida com exclusividade ao CORREIO DE CARAJÁS esta semana.

Quando tudo isso aconteceu o choro veio, obviamente. E a enfermeira que a acompanhava também ficou nervosa com a situação. Segundo Carol, o médico ficava gritando com a profissional de saúde, reclamando que ela não sabia posicionar a paciente direito, por isso que ele estava errando a anestesia. No fim das contas, Carol recebeu seis furadas nas costas.

O marido, que aguardava do lado de fora do centro cirúrgico, acabou entrando na sala ao ouvir os gritos do médico. “Não consegui entender o que tinha acontecido comigo. Eu não conseguia olhar pra mais nada na hora do parto. Só ficava olhando pro meu marido”.

Assim que a cesariana terminou, Carol foi levada para o quarto e conta que não conseguiu dormir durante os dois dias que ficou na maternidade, apenas chorava.

 

“Entendi que aquele anestesista que atravessou a minha história tinha cometido vários crimes em relação a minha pessoa e ao meu corpo que estava ali, em um momento sensível e vulnerável. Não consegui amamentar minha filha e, até então, na minha cabeça era por conta da anestesia. Mas, o tempo todo que eu pegava minha filha, que parava quieta, começava a chorar. Tentei ficar bem. Falei pra minha mãe o que tinha acontecido e tentamos amenizar esse momento que foi tirado de mim. Mas, quando eu ficava sozinha, ouvia aquelas palavras. E uma coisa que é muito ruim no pós parto, que a gente já fica muito frágil, é que o corpo muda. Quando cheguei em casa. que me vi, fiquei pior ainda. Eu só conseguia sentir ódio, raiva e vergonha. Não conseguia olhar pra minha filha, não conseguia amamentar. Só queria dormir e esquecer o que tinha acontecido”.

Sem conseguir amamentar, com o estado psicológico totalmente abalado, Carol recorreu ao Banco de Leite para alimentar a pequena Aya, e pediu auxílio de uma consultora em amamentação para que a ajudasse, já que o leite estava “empedrando”. Nesse momento, veio a culpa. Ela achava que o problema estava em seu corpo.

Logo após o nascimento da filha, o sorriso de Carol escondia a violência obstétrica vivida – Foto: Arquivo Pessoal

Vale ressaltar que a mulher que dá à luz em uma situação de violência tem mais risco de desenvolver depressão pós-parto, dificuldades em amamentar e cuidar do bebê do que mulheres que tiveram o parto humanizado.

Ao ver que o problema da amamentação não estava sendo resolvido com o passar dos dias, procurou ajuda médica particular pois não queria voltar ao HMI. Só que o médico imediatamente a encaminhou para a maternidade pública.

 

 “Fui atendida e de imediato já me colocaram a roupa pra fazer a cirurgia. Só que não havia leito e não tinha médico mais uma vez. Isso acontece todo dia. Toda semana não tem médico. Tem lá a escala, na recepção, a quantidade de médicos que vão atender. Dessa escala só tem uma pessoa. Quem fiscaliza essas pessoas? Por que essas pessoas que não foram estão faltando? Todas estão com atestado médico? Elas podem simplesmente falar que não vão trabalhar ou sair pra almoçar e voltar às 10 horas da noite? Ou elas estão batendo o ponto e indo embora?”, questiona.

Foi nesse momento que Caroline percebeu que esse é um problema recorrente – quiçá diário – do Hospital Materno Infantil.

Internada de manhã para fazer a cirurgia, à noite Carol foi avisada que não ia passar pelo procedimento naquele dia, somente no seguinte. O que também não aconteceu.

Mãe recebe a visita dos filhos, Aya e Juan, durante os dias que ficou internada aguardando ser operada da mastite – Foto: Arquivo Pessoal

“Fiquei o dia inteiro de jejum e nenhum médico foi lá olhar como estava o meu peito. Só pediu pra fazer o jejum porque a cirurgia iria acontecer. Aí a noite avisaram, ‘a cirurgia não vai acontecer, não tem médico e o hospital está lotado’. No terceiro dia, eu perguntei se iriam fazer a cirurgia. Estava sentindo muita dor e só piorava a bolha de pus. Foi quando avisaram que o meu processo tinha que ser por último, no final do dia, por conta da infecção hospitalar. ‘Tem que fazer a sua e lavar tudo’. Na hora pensei, mas é pra isso que tem duas salas de cirurgia, duas equipes médicas, equipe pra poder lavar e esterilizar tudo. Não precisava eu ser deixada por último ou ser esquecida pra fazer uma cirurgia que dura 45 minutos”.

Com uma completa e devastada sensação de abandono, Carol foi operada no quarto dia de internação, após três plantões. A cirurgia foi feita antes das 10 horas da manhã e, sim, foi tudo limpo e esterilizado após a paciente sair da sala de cirurgia.

Se não bastasse todos os problemas – falta (e demora) de atendimento e violência obstétrica – Carol não recebeu os cuidados necessários no pós-cirúrgico.

Em isolamento, por conta do risco de infecção, os enfermeiros que deveriam limpar todos os dias o local onde o procedimento foi feito em seu seio. Porém, isso só feito um dia.

“Eu perguntava e eles diziam que só a enfermeira podia limpar. Perguntava pra enfermeira e ela respondia: ‘tem gaze bem aqui, pega aqui e limpa direitinho’. Meu esposo que limpou. Somente no último dia, uma enfermeira que estava de plantão foi lá e limpou. Isso precisa ser dito. Eu já havia passado por uma situação extremamente grave, e agora voltar e passar por uma situação de abandono”, indigna-se.

Carol celebra cada momento com a filha Aya – Foto: Arquivo Pessoal

Por fim – entre lágrimas – Caroline afirma querer que seu relato sirva de atenção. Sem medo de mostrar o rosto e falar abertamente tudo o que viveu na maternidade pública de Marabá, a paciente espera que algo seja feito urgentemente.

“Se não fizerem nada outros pais vão se sentir como meu marido se sentiu, outras avós vão receber o corpo das suas filhas, que eu fiquei com medo da minha mãe receber meu corpo. Outras crianças vão ficar órfãs, assim como outras mães vão receber o corpo de seus filhos dentro de um caixão. As pessoas não precisam chegar no hospital e ficar gritando, implorando por quem tiver lá dentro, ou ligar pra alguém e perguntar ‘você conhece alguém que trabalhe aqui no hospital?’.

Geferson, Juan Pablo, Caroline e Aya – Foto: Arquivo Pessoal