Correio de Carajás

Luta por educação antirracista chega às escolas de Marabá

Caderno especial é entregue para mais de mil educadores da rede pública de oito municípios do sudeste do Pará como uma ferramenta de combate ao racismo

O caderno antirracista vai contemplar escolas dos municípios de Marabá e outros sete municípios da região de Carajás

“Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. A frase de Ângela Davis se alinha a um movimento atual que em breve chegará às mãos de professores da rede pública de Marabá e de outros sete municípios da região de Carajás, a distribuição do caderno pedagógico “Por uma educação antirracista”. O material será entregue para mais de mil educadores.

O lançamento desta importante ferramenta no combate ao racismo aconteceu na manhã desta quarta-feira, 24, no auditório da unidade 3 da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) em Marabá e reuniu pesquisadores, especialistas e militantes dessa luta, bem como professores, gestores de escolas, representantes e autoridades de municípios da região.

Zélia Amador de Deus, doutora em Ciências Sociais e militante do movimento negro há quatro décadas, vislumbra que o racismo ainda é muito forte dentro das escolas e que iniciativas como esta são significativas.

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Militante no combate ao racismo, Zélia acredita que quanto mais prejuízos às pessoas negras, maiores são os privilégios das pessoas brancas/ Foto: Evangelista Rocha

“Elas são importantes para que os professores aprendam a lidar com o racismo, para que cada um deles possa ser antirracista e que ajude os alunos a serem também”. Seu desejo é que a discriminação racial não tenha espaço na sociedade, pois embora a maioria da população seja parda e preta, ainda são as pessoas brancas aquelas que detém os privilégios que a cor oferece.

O Censo 2022 aponta que 45,3% da população brasileira se autodeclarou parda e outros 10,2% como negros. Em Marabá esse percentual é muito mais expressivo pois 71,57% se identificam como pardas e apenas 9,91% como pretas.

A autodeclaração de raça/cor é uma das ferramentas que fortalecem a luta antirracista. Entretanto, em uma sociedade que há séculos desumaniza pessoas pretas, se identificar como tal comumente se torna um desconforto. É o caso dos pequenos alunos da Escola Professor Mário Antônio.

ESCOLA ANTIRRACISTA

A Academia Brasileira de Letras define o termo “antirracista” como a postura, atitude, movimento, prática, etc. que se opõe ao racismo ou o combate. Nesse sentido, a Escola Professor Mário Antônio, localizada na Folha 25 da Nova Marabá, uma região periférica do munícipio, se dedica a entrelaçar o ensino formal com uma educação antirracista e a valorização da diversidade de raças.

Em conversa com a Reportagem do CORREIO, Kislane Rodrigues, diretora, estima que das 181 crianças matriculadas, cerca de 80% são pretas. Mas nem todas se identificam assim. Quando se fala em cor da pele, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que pessoas pretas são aquelas com tons de pele mais escuros, enquanto as pessoas pardas englobam aquelas com tons de pele menos escuros (ou mais claros).

Kislane é diretora de uma escola da Folha 25 e conta sobre as iniciativas para combater o racismo/ Foto: Evangelista Rocha

“O problema maior é a questão de aceitação. Na maioria das vezes eles preferem ser chamados de pardos ou de morenos, negros não. Eles querem uma cor clara”, revela. A gestora explica que dentro de sala de aula, os professores – que se autodeclaram pardos ou pretos – desenvolvem projetos que trabalham a identificação racial das crianças.

Em um desses trabalhos, o educador construiu um cartaz com diversos tons de pele. O trabalho permitiu que os alunos percebessem as cores e se identificassem com elas. “A questão do lápis de cor também é muito significativa, porque eles conseguem verificar a diferenciação de tons”.

Outro projeto, mais voltado para a valorização da autoestima da criança, também é realizado na escola. Através de penteados, a instituição faz um trabalho anti-bullying porque entende que, na maioria das vezes, esse ato discriminatório acontece por conta do cabelo, muitas vezes apontado como “ruim”.

“Eu tenho uma aluna negra lá na escola que é belíssima e ela ainda não conseguiu entender isso”, lamenta Kislane.

 

Precisamos formar professores antirracistas, afirma vice-reitora

“A sociedade precisa se humanizar e o racismo desumaniza as pessoas”, afirma Zélia Amador de Deus. Levar esse combate para as escolas é fazer uma educação de base na construção de uma coletividade antirracista.

Quem corrobora com essa visão é Lucélia Cavalcante, vice-reitora da Unifesspa, pedagoga, mestra e doutora em educação especial. A educadora acredita que formar professores antirracistas contribui com a formação das novas gerações de forma a romper com essa cultura. Nesse sentido, o caderno pedagógico “Por uma educação antirracista” é uma grande ferramenta para os profissionais que atuam na sala de aula.

“O caderno é uma grande ferramenta para os profissionais que atuam na sala de aula”

Até pouco tempo atrás a realização de ações como essa, do caderno, seria impensável dentro das escolas e por isso Lucélia vê este momento como histórico.

“É um grito de libertação da opressão que nós vivenciamos nos últimos tempos, em que se veiculou no Brasil por uma vertente bastante reacionária, conservadora, preconceituosa de que o Brasil não é um país racista. Todos os dias a gente se depara com práticas discriminatórias de preconceito e de assassinato em razão do racismo”, declara.

Dados da própria universidade refletem a importância da temática ser levantada dentro da academia. Um censo realizado com estudantes da Unifesspa, apurou que 59% deles se identificam como pardos, 16% pretos, 19% brancos e 3% indígenas. Ao todo foram 5.029 respostas coletadas entre alunos de graduação e pós-graduação, o que corresponde a 80,02% do total de discentes matriculados nos mais diferentes cursos e de todos os campi da universidade.

Para Renato Nogueira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que também participou dos diálogos propostos no evento, o racismo atrasa a sociedade e a educação antirracista é uma ética hospitaleira, que abraça a todos.

“Essa educação é fundamental para termos uma sociedade plural e diversa, onde todo mundo possa existir”, medita.

PERCEPÇÕES

“A gente acredita que uma educação de qualidade é para todos e todas, e uma educação diversa e inclusiva”. Quem afirma é Flávia Constant, diretora de investimento social privado da Vale e diretora-presidente da Fundação Vale, realizadora do projeto. Ela assevera que as escolas tem um dever constitucional de exercer um papel antirracista.

Flávia acredita em uma educação que abraça a todos/ Foto: Evangelista Rocha

A diretora explica que para a construção do caderno foram consultados especialistas sobre o tema e que seu objetivo é dialogar junto com os professores, para que a partir de suas experiências e saberes seja possível transmitir para os alunos, da melhor forma possível, uma educação que combate essa prática preconceituosa e desumana.

Sua xará, Flávia Araújo, contadora do BNDES, um dos parceiros do projeto, reconhece a importância do tema e reforça que não é suficiente não ser racista, é preciso ir além e ensinar as crianças a terem uma postura ativa contra o racismo.

“Eu acho que esse caderno antirracista é essencial para contribuir nesse debate que é tão importante para a construção de uma consciência coletiva”, reflete.

Por sua vez, Vilma Guimarães, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), também parceira do projeto, e coordenadora geral do projeto “Trilhos da Alfabetização” no Pará e no Maranhão, vê no racismo um grande impacto negativo para a aprendizagem das crianças.

“Trabalhar essa temática é gerar uma qualidade de inclusão e acolhimento de todas as nossas crianças, sem preconceitos”. Ela também ressalta que a função da escola é de transformação.

(Luciana Araújo)