Em mais de 50 anos de existência, o movimento hip hop saiu das periferias para o centro dos mercados da cultura em todo o mundo. “Hoje, se você vai à lista dos artistas que mais produziram hits [canções de grande sucesso] encontra uma maioria de rappers”, destaca o pesquisador e jornalista Spensy Pimentel.
Porém, mesmo se tornando uma estética amplamente consumida, o movimento ainda mantém a essência de contestação das suas origens. “O rap e o hip hop continuam sendo um canal de expressão para lutas ao redor do mundo”, acrescenta ao comentar sobre o surgimento de grupos da rap indígena no Brasil.
Como exemplo, Pimentel cita Brô Mc’s, formado em 2009 em Mato Grosso do Sul por indígenas guarani-kaiowá. “Na época em que conversamos, eles falavam sobre como ouviam Racionais [Mcs], ouviam grupos de rap de São Paulo e se identificavam com a situação que era vivida nas favelas”, explica o pesquisador, autor de O Livro Vermelho do Hip-Hop.
Leia mais:Ele cita os problemas que aproximam as duas realidades, que se encontram na expressão pelas rimas do rap: “As reservas indígenas superlotadas e muito próximas da cidade, lá da região, padecendo de problemas urbanos, como violência, que afeta muitos jovens, um alto índice de suicídios e insegurança alimentar”.
Relançamento
Originalmente, O Livro Vermelho do Hip-Hop foi o trabalho de conclusão do curso de jornalismo de Pimentel na Universidade de São Paulo. O livro-reportagem, de 1997, se baseava em entrevistas com expoentes do movimento na capital paulista, no Rio de Janeiro, no Recife e em Brasília. Inicialmente, o autor fez o trabalho circular em versões fotocopiadas entregues aos entrevistados. A Revista Caros Amigos fez um especial baseado na pesquisa de Pimentel em 1998. Pouco depois, em 1999, o portal Bocada Forte, especializado em hip-hop, abrigou uma versão digital do livro.
O trabalho ganha agora nova versão em publicação conjunta das editoras Glac e Autonomia Literária. A edição foi lançada durante a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), na capital paulista.
Essa edição atualiza, segundo o autor, o trabalho original, ao mostrar justamente como o hip hop se mantém como expressão das lutas atuais. Ao mesmo tempo, explica Pimentel, fazer um novo lançamento do livro é uma forma de manter viva a memória que criou o movimento estético. “Tem esse sentido de tentar fazer, tentar buscar algo com essas novas gerações, para que rememorem as raízes do movimento e percebam que essas raízes estão muito conectadas com os movimentos de luta pela descolonização”, afirma.
Martin Luther King e Malcom X
Entre os movimentos que fizeram a formação da cultura hip hop está a organização dos Panteras Negras. O nome do livro faz referência a uma cena do filme dirigido pelo norte-americano Melvin Van Peebles, em 1995, em que os integrantes do movimento vendem o livro de citações do líder da revolução chinesa Mao Tsé-Tung para arrecadar fundos. A publicação é conhecida como “O Livro Vermelho”.
Os Panteras Negras foram uma organização dos Estados Unidos que tinha como um dos objetivos principais a proteção da população negra contra a violência policial, mas atuou em diversas frentes de organização comunitária. Também são apresentados no Livro Vermelho do Hip-Hop personagens fundamentais das lutas estadunidenses por direitos civis, como Martin Luther King e Malcom X. Para contextualizar essas histórias, a narrativa se apoia em vários filmes, documentários ou não.
Na época em que lançou o livro, Pimentel buscava ocupar uma lacuna na produção intelectual sobre o hip hop. “Ele acabou sendo um documento que apoiou, em muitos lugares, as iniciativas que buscaram fazer com que o poder público reconhecesse o hip hop como expressão cultural válida, merecedora de apoio”, diz sobre a importância da publicação que circulava em fotocópias de mão em mão.
O rap no Brasil ainda estava em plena efervescência e começando o caminho para conquistar público amplo. Sobrevivendo no Inferno, um dos principais álbuns dos Racionais também foi lançado em 1997. Desde 2020, o livro com as letras do disco é leitura obrigatória para o vestibular da Universidade Estadual de Campinas. “Depois, vieram muitos estudos [sobre hip hop] e hoje, com certeza, mais trabalhos de vários autores, ainda mais com a inclusão que foi ocorrendo na universidade nos últimos 20 anos”.
(Agência Brasil)