Correio de Carajás

Justiça proíbe Vale de repassar dinheiro à Prefeitura de Marabá

Litígio em área onde está sendo construída a segunda ponte sobre o Rio Tocantins sobe de estágio e “mela” negociação entre município e mineradora

Área onde está o canteiro de obras da ponte sobre o Rio Tocantins está em litígio judicial que discute R$ 10 milhões em indenização

A Prefeitura de Marabá divulgou nesta terça-feira, 19, no Diário Oficial dos Municípios, a suspensão do processo de contratação de empresa de engenharia para a execução da construção do novo Hospital Municipal de Pronto Socorro, localizado na Folha 17, na Nova Marabá, ao lado da casa de saúde já existente.

A decisão foi tomada após a juíza titular da 3ª Vara Cível e Empresarial de Marabá, Aline Cristina Breia Martins, determinar a suspensão de quaisquer pagamentos pendentes pela Vale ao município de Marabá por conta de um processo que corre no Tribunal de Justiça do Estado do Pará entre a mineradora, a Prefeitura de Marabá e Maria Divina da Silva. Esta última alega que é proprietária de uma área próxima à cabeceira da ponte, a qual o município garante ser sua.

O CORREIO teve acesso à decisão, que não corre em segredo de justiça.

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Entenda o caso

Uma área de 21,8288 hectares – aproximadamente 21 campos de futebol – localizada no Núcleo São Félix, entre a ponte atual e o local das novas pontes (que já estão sendo construídas sobre o Rio Tocantins) e que supostamente pertenceria à Prefeitura de Marabá, por doação do Governo Estadual ainda na década 1970, foi regularizada em tempo recorde no início de janeiro de 2023 por Maria Divina da Silva, que também garante que tem documentos da década de 1960.

Inclusive, ano passado, o município estava em tratativas para conceder Permissão de Uso Administrativa do imóvel para a mineradora Vale por conta da construção dos acessos das novas pontes. Com isso, parte da contrapartida seria a construção de um Pronto Socorro em Marabá com repasse de R$ 15 milhões pela mineradora.

Com a manifestação da família de Maria Divina para paralisar as obras da Vale, a Superintendência de Desenvolvimento Urbano (SDU) ingressou com um pedido na Justiça Federal para cancelamento da matrícula que ela obtivera no Incra, mostrando todos os documentos que possuía e o repasse da área pelo Estado ao município para a formação do Bairro São Félix.

Com a ação da Prefeitura, o juiz federal, Heitor Moura Gomes, concedeu uma liminar, determinando o imediato bloqueio da matrícula do imóvel para evitar transferências ou averbações pelo prazo de dez anos, até que a situação seja analisada adequadamente pela justiça.

“Com relação ao motivo do deferimento da liminar, deve-se deferi-la porque há indícios de irregularidade na titulação da área. Isso porque o imóvel se encontra localizado no perímetro urbano do Município de Marabá, criado pela Lei Municipal n. 6.848/85, alterada pela Lei Municipal de n. 17.358/2009. As fotos do Laudo Fundiário de Levantamento de Áreas não dão margem à dúvida quanto a isso, apresentado, na imagem de satélite, o perímetro urbano do município e a localização do imóvel no interior desse perímetro.

A localização da área dentro do polígono urbano municipal levanta a questão de saber sobre a origem do terreno, a fim de poder averiguar o porquê o imóvel foi titulado pelo INCRA, como se originalmente pertencesse à União ou à autarquia, quando parece pertencer ao Município de Marabá, a fim de justificar a legitimidade da outorga a Maria Divina”, disse Heitor à época.

O outro processo segue tramitando na Justiça Estadual, onde a juíza Aline Cristina Breia Martins em sua mais recente decisão, pondera que por considerar a área e seu entorno como um objeto de interesse público para fins de desapropriação, e que o cronograma da obra prevista para ser executada no local já se encontra em curso, ela entende como prudente manter as coisas no estado em que se encontram relativamente estabilizadas, por causa das obras em execução e a sua relevância.

“Havendo fundada dúvida acerca de quem é o proprietário do domínio do imóvel objeto do litígio, o qual pode vir a ser o mesmo imóvel objeto da desapropriação, hei por bem determinar a suspensão de quaisquer pagamentos pendentes pela Vale S.A ao município de Marabá, até o deslinde do presente feito”, finaliza a juíza.

A Reportagem levantou que a Vale já teria repassado cerca de R$ 1,8 milhão à Prefeitura de Marabá dos R$ 15 milhões previstos. Agora, está proibida de transferir qualquer recurso até nova decisão judicial, que por sua vez não alcançaria os R$ 70 milhões relacionados às obras de asfalto que estão previstas em outro acordo entre município e a mineradora.

VERSÃO DA VALE

Procurada pela Reportagem do CORREIO para se posicionar sobre a decisão judicial, a assessoria de Imprensa da Vale enviou a seguinte nota: “A Vale informa que não foi notificada sobre decisão judicial referente à suspensão de repasses de recursos oriundos de convênios firmados com o Município”.

SDU vê ilegalidade em documentos da família

 

A Reportagem do CORREIO ouviu o superintendente da SDU, Mancipor Lopes, que fez algumas observações em relação ao litígio judicial em relação à área em disputa no São Félix.

Segundo ele, no que tange à posse e domínio do imóvel, em 1965 o governo do Estado concedeu título de ocupação em favor de Raimunda Francisca da Silva, genitora da litigante Maria Divina da Silva, sem, todavia, transferir efetivamente a propriedade, referido título de ocupação legitima tão somente a posse, ainda que em caráter precário. “Tanto é verdade a mera legitimação da posse da senhora Raimunda Francisca da Silva, que a regularização fundiária, da qual se transmite o domínio, somente se operou no mundo jurídico com seus efeitos, em 1975, por meio da Lei Municipal n° 629 de 27 de junho de 1975, gerando o Título de Enfiteuse n° 1.175 (matriculada sob o n° 6.786), destacada exatamente da transcrição imobiliária 2.492, a qual materializou a doação do Estado ao Município”.

Para ele, a área originária transferida à senhora Raimunda Francisca da Silva, efetivada em 1975, não é a mesma que se discute na Justiça Federal, onde foi regularizada pelo Incra sob fortes indícios de irregularidades Maria Divina da Silva, filha de referida senhora. “Então veja, indiscutível que o imóvel sempre pertenceu ao município de Marabá (com a transferência do Estado por doação), e, jamais, à União Federal, isto porque essa porção de terras de 3.600 hectares não se confunde com a gleba Geladinho Praia Alta que de fato pertence ao ente federal.

Superintendente Mancipor Lopes garante que doação do Estado para o município se operou de pleno direito

Não se confunde por duas situações. A primeira reside no fato de que a doação do Estado para o Município se operou de pleno direito, a tempo e modo;

Segundo, a multicitada gleba somente veio a existir formalmente em 1º de junho de 1979, com a lavratura da Matrícula n° 1.385, seis anos após a área de propriedade do Município de Marabá encontra-se efetivamente matriculada (11 de dezembro de 2973), com doação efetivada em 26 de junho de 1969.

Outrossim, quem desde o princípio outorgou a propriedade do imóvel em favor de Raimunda Francisca da Silva, genitora de Maria Divina da Silva e primeira detentora do imóvel, fora o Município de Marabá, por meio de enfiteuse, tendo o título de ocupação outrora outorgado pelo Estado perecido com a formalização da doação ao ente municipal”.

Advogada de Maria Divina rechaça posição da PMM

Procurada pela Reportagem do Correio nesta terça-feira, 19, a advogada Mênilly Lóss Guerra, do escritório WFK Advogados, que defende os interesses de Maria Divina da Silva, garante que a família de Maria Divina iniciou a regularização fundiária com muita dificuldade, devido aos elevados custos envolvidos nesse processo. Entretanto, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi emitido no ano de 2020; o georreferenciamento foi elaborado em 20 de agosto de 2022; e a Certidão de Ocupação foi expedida pelo Incra em 23 de dezembro do ano passado, enquanto o título de domínio foi emitido pelo mesmo órgão fundiário três dias depois.

Segundo ela, a agilidade do processo de regularização fundiária se deve à padronização dos procedimentos adotados pela autarquia federal, justificada por um parecer referencial elaborado pela Procuradoria Geral Federal, que normatizou e agilizou os procedimentos para regularização de imóveis com até 15 módulos fiscais. Este parecer foi emitido em 13 de outubro de 2022 e beneficiou todos os processos em trâmite no Incra, não apenas o de Maria Divina. “É notória a expedição de mais de 50 mil títulos de propriedade pelo Incra em nossa região, apenas nos últimos 2 anos”, argumenta a advogada.

Ainda segundo Mênilly Guerra, a própria matrícula-mãe da Gleba Geladinho, onde se localiza o imóvel em discussão, é possível observar dezenas de destacamentos de porções de terra, entre os anos de 2022 e 2023, em benefício de outros cidadãos.

“A família da senhora Maria Divina exerce posse sobre o imóvel desde julho de 1965, quando recebeu um Título de Ocupação expedido pelo Estado do Pará, reconhecendo o direito de Raimunda Francisca da Silva, mãe de Maria Divina da Silva”, diz a advogada, que apresentou cópia desse documento à Reportagem do CORREIO.

Ela observa que o Título de Ocupação é anterior à Transcrição de Transmissão do Município, que data de 1969.

Com relação ao processo de Anulação de Título que o Município de Marabá move contra o Incra e Maria Divina junto à Justiça Federal, a advogada informa que foram apresentadas as contestações, que demonstram a legalidade do processo administrativo de titulação do imóvel.

“O próprio Incra atestou a nulidade da transcrição de transmissão do município, por diversos motivos, mas, principalmente, porque o Estado do Pará ‘concedeu’ 3.600 hectares, violando o limite constitucional vigente à época, que era de 3.000 hectares. Além disso, cabia ao município a adoção de condições resolutivas expressas no documento, que dispõe que a transferência ‘somente será efetivada, após serem tomadas todas as providencias exigidas pela legislação em vigor’, condutas ignoradas pelo município”, pontua Mênilly Lóss.

“Justificativa utilizada pelo município de Marabá visa unicamente a criar narrativa que lhe favoreça”

Embora o imóvel esteja localizado dentro do Plano Diretor de Marabá, a advogada diz que a lei municipal estabeleceu os limites da cidade ignorando completamente o fato de que, perante as regras de regularização fundiária e de transmissão de imóveis, o município de Marabá jamais foi o proprietário daquela área, porque o documento que possui é nulo e porque não tomou as providências legais necessárias.

“A lei dispõe que proprietário é quem registra, assim, a União passou a ser proprietária do imóvel desde a arrecadação da Gleba Geladinho, quando foi aberta a matrícula nº. 1385 e, posteriormente, a matrícula 44453. O Município de Marabá, ao contrário, não possui matrícula, mas apenas uma Transcrição de Transmissão nº. 2.492. Diante disso, é seguro afirmar que o imóvel é rural, pois jamais houve qualquer requerimento de descaracterização do imóvel para urbano”.

Por fim, a assessoria jurídica de Maria Divina esclarece que é injusto imputar responsabilidade da família pela paralisação da construção do Pronto-Socorro, pois o município de Marabá está recebendo mais de R$ 70 milhões de indenização da empresa Vale, montante cujo repasse não foi paralisado e que não possui nenhuma relação com a verba indenizatória de R$ 10 milhões que está sendo discutida no caso que envolve Maria Divina.

“A justificativa utilizada pelo Município de Marabá visa unicamente a criar uma narrativa que lhe favoreça, tentando transferir sua própria culpa para a família que, verdadeiramente, é proprietária do imóvel, situação que é inaceitável e imoral”.

(Ana Mangas e Ulisses Pompeu)