Correio de Carajás

Hip-hop ocupa espaços e ecoa vozes marginalizadas em Marabá

Cena local mostra que, mais do que música, o hip-hop é espaço de crítica, pertencimento e luta para a periferia

Artista e pesquisador, Trevo abordou a cultura marginalizada na dissertação de mestrado/Foto: Evangelista Rocha
Por: Luciana Araújo

Um, dois, três degraus até o tablado. O microfone preso na mão, o corpo vibrando pela expectativa das primeiras notas da música. A iluminação estoura no rosto, a plateia explode em gritos e palmas. Trevo Ribeiro está no palco da batalha de rimas.

Batizado como Estevão de Figueiredo Ribeiro, hoje pesquisador, artista e professor, Trevo é uma das referências marabaenses no cenário do hip-hop. Nascido no Acre e radicado em Marabá, ele atravessa a Amazônia com um olhar único para a cultura popular e marginalizada desse território.

Sua relação com o movimento transcendeu a vivência pessoal e artística e emergiu em sua vida acadêmica. Frequentador e participante das batalhas de rimas desde 2022, em Marabá, Trevo decidiu levar o tema para dentro da academia.

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Ele foi aluno do Programa de Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA), da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), e se tornou mestre com a pesquisa ‘Isso é batalha de rima no estilo underground: As batalhas de rima em Marabá/PA e a disputa pela cidade’. Nesse trajeto, foi orientado pelo professor doutor Hiran de Moura Possas.

MCs se reúnem na Batalha do Foguete para expressar arte e resistência/Foto: Trevo Ribeiro

“Minha relação com o tema surgiu de forma orgânica. Eu sou artista, sou poeta e já vinha envolvido com o movimento hip-hop quando morava no Acre e participava das movimentações de poesia nas ruas. Quando cheguei em Marabá, essa nova conexão foi muito rápida por causa dessa ocupação das praças públicas”. Ao encontrar nos artistas marabaenses um reflexo de si, Trevo firmou parcerias e iniciou a construção de eventos colaborativos.

Sendo um movimento que nasceu na década de 1970 nas comunidades jamaicanas, latinas e afro-americanas de Nova Iorque (Estados Unidos), o hip-hop versa sobre a parcela da população que enfrenta problemas sociais como o racismo, a pobreza e diversas formas de violência.

Em Marabá, esse cenário não é diferente. Por estar ligada de forma simbiótica à periferia, a cultura do hip-hop é marginalizada por si só. Isso porque o termo marginal é comumente usado para identificar pessoas envolvidas com o mundo do crime. Contudo, em sua raiz, o vocábulo refere-se àquilo — ou a quem — está à margem, na borda. É o caso dos moradores das periferias, que permanecem à margem de uma sociedade concentradora de renda e oportunidades.

As batalhas de rima são um ecossistema potente de luta, resistência e denúncia/Edição: Trevo Ribeiro

OCUPAÇÃO URBANA

“Participando desse movimento (hip-hop) de ocupação do espaço público, entendi que o assunto era muito importante e deveria ser debatido, já que é uma manifestação cultural frequente. Quando comecei a pesquisa, queria entender a dinâmica territorial dessas pessoas dentro do contexto urbano do movimento”, detalha Trevo Ribeiro.

Marabá não é uma cidade com mobilidade urbana amigável, principalmente para aqueles que precisam de transporte público para se locomover. Como as batalhas mais populares acontecem em pontos extremos da cidade, como o bairro Liberdade e o núcleo Morada Nova, diversos espectadores fortalecem os eventos a cada apresentação. Isso porque o contato da plateia com o hip-hop nasce da identificação.

Sendo uma expressão cultural marginalizada, o hip-hop cumpre o papel social de denúncia, com músicas que retratam a vida nas periferias e letras que entrelaçam, em uma teia melódica, a história de quem sobrevive com pouco, convive com a desigualdade de classes e resiste para que suas lutas não sejam apagadas.

Esse fluxo de movimentações é abordado por Trevo em sua dissertação. O coletivo das batalhas de rimas, articulado com outras redes de intervenção artística, influencia para que os espectadores circulem pela cidade. Mas, se por um lado essa comunidade é incentivada a ocupar todos os espaços, por outro, o fluxo da cidade cria obstáculos para que ela não tenha êxito nessa empreitada.

“Há uma questão de higienização do espaço público, onde as pessoas marginalizadas são cada vez mais afastadas para as periferias. Além de lidarem com o assédio policial, principalmente nas batalhas mais marginais”, complementa Trevo.

O mesmo ocorreu — e eventualmente ainda acontece — com grupos que estão na cena cultural de Marabá há mais tempo: rock, reggae, boi-bumbá, carimbó e outras manifestações, muitas de matriz negra e africana. Trevo reflete que muitos desses movimentos não foram reconhecidos como arte, ocupando espaços como shows e espetáculos, porque, em uma sociedade que prioriza certas manifestações artísticas em detrimento de outras, a cultura é vista como capital, e não como motor de transformação social.

Batalha de rima ao lado do palco do MUCANPA em 2014/Foto: Nelson Jean

PEREGRINAÇÃO JOVEM

Um formulário de 98 perguntas, elaborado em conjunto com os MCs, permitiu que Trevo traçasse um perfil dos participantes e do público. Os dados da pesquisa reafirmaram aquilo que já era sabido: a maior parte do movimento é formada por jovens negros entre 15 e 25 anos, em grande parte homens.

Já a participação feminina aparece de maneira tímida, mas em crescimento gradual. Muitos desses jovens estudam e trabalham ao mesmo tempo, mais uma peça do quebra-cabeça que retrata a realidade da juventude periférica.

“Com essas informações, deu pra mapear os deslocamentos. Tem participante que percorre até 20 km, como quem sai de Morada Nova para ir até a Praça da Liberdade. Já vi gente pedalar 15 km, atravessando a ponte do São Félix, só pra poder batalhar. E esses deslocamentos não são só físicos: é também sobre sair do crime, sobre deixar de ser marginalizado, sobre conquistar um espaço de voz e de escuta. As batalhas têm esse caráter democrático, com regras que garantem o respeito e a participação de todos”.

Nesse ponto, a pesquisa de mestrado de Trevo carrega em seu guarda-chuva mais uma bandeira social: a universidade, mesmo pública, historicamente é um espaço elitista. E estudar o hip-hop dentro da academia é uma forma de legitimar essas vozes que sempre foram marginalizadas.

Trevo é certeiro ao pontuar que a Unifesspa, apesar do elitismo intelectual que ainda existe, tem um histórico de diálogo com os movimentos sociais e de abertura para manifestações artísticas. O Tapiri da Unidade I, por exemplo, na gestão da Nilza Ribeiro, foi fundamental. “Movimentos como Vozes da Periferia também contribuíram muito para consolidar o rap em Marabá. Isso desembocou em projetos como a Batalha do Conhecimento, feita pelos estudantes na Morada das Artes”, destaca.

Mas o hip-hop não está nesses palcos. Trevo explica que atualmente existem duas batalhas ativas em Marabá, mas elas são muito dinâmicas: é preciso acompanhar as redes para saber onde vão acontecer. A Batalha do Foguete acontece às quintas-feiras, às 20h, na Praça da Criança, núcleo Nova Marabá, e a Batalha do Pesadelo, às quartas, na Praça dos Sonhos, no São Félix. São eventos gratuitos e abertos; qualquer pessoa pode participar, seja como público, seja como MC.

Entre versos, espaços ocupados e lutas que resistem nas praças, a dissertação de mestrado de Trevo reafirma que o hip-hop é mais do que música: é território, é voz e é memória. Ao transformar sua vivência em pesquisa, ele legitima um movimento que insiste em existir à margem. Uma história que não cabe em limites de fronteiras porque flui pelas ruas, reverbera nos microfones e insiste em dizer: a periferia pensa, canta e cria.

Hip-hop como voz e resistência na Amazônia: o relato de Juzin VM

O microfone, a praça e a rima são trincheiras. Para Júlio César Carvalho Filho, o Juzin VM, MC do núcleo Velha Marabá, o hip-hop é mais do que cultura: é sobrevivência, denúncia e resgate.

“Me deu um entendimento de pessoa, de onde eu estava, qual era a minha situação, de que lado eu deveria estar”, conta.

No começo, eram poucos. Ele lembra que oito anos atrás quase ninguém ocupava os espaços públicos com batalhas de rima. Hoje, há uma geração que insiste mesmo diante da falta de recursos, da ausência de incentivo e da violência policial que ainda reprime quem precisa da rua para fazer arte. “A batalha precisa da praça, do espaço público. Quem está começando não está em festival ou em palcos grandes. Está na rua”.

Juzin VM: “O rap me mostrou meus valores, me ensinou a reconhecer onde estou”/Foto: Arquivo pessoal

Refletindo sobre o contexto territorial da economia do sudeste paraense, Juzin afirma que o hip-hop é também uma luta contra o agronegócio que avança sobre a floresta, contra o desmatamento e a poluição dos rios. Para ele, cada rima é um grito em defesa da Amazônia e de sua gente: “Primeiramente, o hip-hop é contra tudo que vá destruir a natureza. E, ao mesmo tempo, é entretenimento e resgate do próprio indivíduo da região, que passa a se entender como amazônida, como nortista”.

Numa região onde os festivais e os empreendimentos culturais ainda são escassos, o rap aparece como resistência e como rara forma de lazer. Mas uma coisa é certa: o rap do interior tem mais força do que o das capitais. “Ele se torna um grito de resistência, mas também devolve esse resgate, esse reconhecimento da nossa cultura”, diz Juzin com veemência.

Para além da transformação que o movimento agrega à cidade, a vivência pessoal de Juzin também foi transformada. O contato com o hip-hop o afastou de ilusões trazidas pela internet e o aproximou da realidade de sua comunidade.

“A criminalidade aqui é silenciosa. Vai tomando as pessoas, dominando comunidades ribeirinhas pelo tráfico de madeira ou outras coisas. O rap denuncia isso. Ele me mostrou meus valores, me ensinou a reconhecer onde estou”.

Mesmo com público ainda restrito, ele acredita que o impacto será cada vez maior avaliando que, embora poucas pessoas escutem seu som, aquelas que o ouvem ganham consciência crítica. “É isso que faz a gente evoluir”, garante com orgulho.

O rap que ecoa em Marabá carrega referências. De Racionais a Hungria, de RZO a Facção Central. Para Juzin, no entanto, o mais importante é a mensagem.

“O hip-hop trouxe valor para minha galera, trouxe entendimento. Ele é contra a repressão, contra o abuso de poder, contra qualquer coisa que esmague a periferia”.