Correio de Carajás

Guerra por licenças na ANM acirra briga por ouro, diamante e outros minérios em frente à orla de Marabá

Guerra por licenças na ANM acirra briga por ouro, diamante e outros minérios em frente à orla e em outros trechos dos rios na área urbana de Marabá

Os rios Tocantins e Itacaiunas estão assoberbados de licenças e requerimentos de lavra para mineração na área urbana de Marabá

Os rios Tocantins e Itacaiunas, especificamente na área urbana de Marabá, estão se transformando em uma nova Serra Pelada. A mais recente corrida do ouro, todavia, não é para garimpar. Mas para especular e, às vezes, para esquentamento de notas de produtos retirados em outras áreas.

É comum ouvir dos antigos marabaenses ribeirinhos que os rios Tocantins e Itacaiunas estão cheios de minério. Ouro, diamante, cristal, pedras preciosas. E essa não é uma mera história de pescador. No passado, vários garimpos de diamante, ouro e de cristal trouxeram milhares de pessoas para essa região, vindas do Goiás e Maranhão.

De acordo com um levantamento feito pelo Correio de Carajás ao longo dos cursos dos rios (e de suas margens), que estão dentro da área urbana do município, há cerca de 24 processos minerários relacionados a substâncias como ouro, diamante, quartzo e ferro. Há, ainda, extração de areia, argila e seixo, mas esse tipo de exploração é visto como “normal” na região.

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O questionamento que fica é: por que a Agência Nacional de Mineração (ANM) permite a abertura de processos minerários de ouro e diamante nos rios marabaenses, inclusive em cima da Praia do Tucunaré ou em terra firme, na cidade?

Uma possível resposta a essa pergunta está em uma reportagem feita em março de 2023 pela Agência Pública, primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil.

A coluna, assinada por Rubens Valente, aponta que a ANM “tem uma fiscalização falha e omissa e não dispõe de um sistema eletrônico de controle da cadeia de custódia do ouro”. Além disso, o jornalista aponta que a autarquia faz uma “interpretação equivocada” da legislação, o que resulta em uma concentração de títulos minerários nas mãos de poucas pessoas.

Usando o levantamento do CORREIO como exemplo, para os 24 processos minerários citados anteriormente, há apenas 15 titulares diferentes. Seis processos estão nas mãos de uma única empresa; outros três pertencem a um segundo empreendimento; uma terceira organização detém dois processos e uma pessoa física também possui os direitos de outros dois. Os outros 11 processos estão divididos entre 11 entidades diferentes.

Na área observada pela reportagem do CORREIO, existem 14 processos minerários para ouro. Eles se dividem entre requerimento de pesquisa, autorização de pesquisa e requerimento para lavra garimpeira e direito de requerer a lavra. Outros sete são para diamante; dois para minério de ferro e um para quartzo.

Para deter a permissão de pesquisar ou de explorar determinada área, o solicitante precisa passar por um processo burocrático que envolve tanto a ANM quanto a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma).

O interessante nesse processo é que, se uma área já está vinculada a determinado titular, ainda que ele não a esteja utilizando de fato, ela não pode ser explorada por um terceiro (salvo processos de substâncias diferentes).

Contudo, um titular pode transferir sua licença para outrem, fazendo a cessão ou arrendamento total ou parcial do título minerário. Opção que dá margem para a prática conhecida como “especulação”.

 

Especulação nos rios dificulta trabalho de empresas locais

Em uma reunião da Comissão de Mineração, Energia, Meio Ambiente, Trabalho, Indústria, Comércio e Economia da Câmara Municipal de Marabá, em 17 de junho deste ano, Célio Marinho, presidente da Cooperativa de Extratores de Seixo e Areia de Marabá (Coesama), explicou que os extratores da cooperativa gostariam de trabalhar em um perímetro bem abaixo da Praia do Tucunaré, mas o espaço ali é quase zero. Célio lamenta que vários especuladores entraram com processo junto à ANM requerendo áreas. Atualmente, algumas estão em litígio ou marcadas para ir a leilão.

Célio Marinho, da Coesama, diz que extratores gostariam de trabalhar em outra área, mas não o rio está “fatiado”

Em uma definição simples, especulação, nesse caso minerária, é quando se forma um “estoque” de áreas que podem ser negociadas posteriormente. Diante de vários pedidos de autorização de lavra, a ANM acende o alerta de que algum desses casos possa ser para “esquentamento do ouro”, uma prática que visa dar ares de legalidade a minério extraído de outra área ilegal.

Em entrevista ao Correio de Carajás, Janine Lage, diretora da Semma (Secretaria Municipal de Meio Ambiente), explica que a prática é comum no município, mas a secretaria não tem poder para impedir a especulação. Ela relata que mesmo em casos onde determinado titular de uma área (polígono) não a explora de nenhuma maneira, a Semma não possui nenhuma autoridade para realizar ações sobre isso pois foi a ANM quem concedeu aquele direito.

Janine explica que é a ANM quem dá autorização para lavra, mas ela é reavaliada pela SEMMA

“Algumas pessoas e cooperativas, de Marabá, estão tentando buscar apoio junto à Câmara para interceder, na ANM, sobre essa especulação, onde a pessoa tem a concessão, mas não faz nada e impede aquele que tem interesse de explorar”, lamenta a diretora.

Brigar contra a especulação é um dos desafios dos extratores de areia e seixo, uma vez que a autoridade da Semma, nesse sentido, é limitada. Janine expõe que a secretaria vivencia o problema diariamente e se solidariza com a população marabaense e com os empresários que têm interesse em operar naqueles polígonos, mas o poder que a ANM exerce na concessão das áreas é maior que o da secretaria.

“Se a Semma tivesse essa competência, para poder verificar o impacto local, seria mais fácil. Você requereu e não fez nada, eu vou lá e tomo de você. Então, infelizmente, é brigar na ANM via administrativa, brigar na justiça. A Semma só pode fornecer dados, números, mas não pode intervir porque não tem poder para isso”, enfatiza.

Janine também esteve presente na reunião da Comissão Minerária e naquela oportunidade expressou sua crença na possível união entre Executivo e Legislativo, de preparar uma peça jurídica para retirar as empresas que atuam com especulação e que travam o trabalho de quem realmente opera nesse ramo no dia a dia.

  

Impasse na extração de seixo e areia em Marabá

Paralela à sinuca entre os especuladores dos polígonos e os extratores de seixo e areia, os cooperados da Coesama sofrem com a falta de compreensão sobre o trabalho que realizam. A categoria anseia operar da melhor forma sem entrar em conflito com a comunidade e nem com a legislação. Mas, para Célio Marinho, há um impasse na legalidade total da extração.

Durante a reunião na Câmara, ele relembrou que em 2023 uma comissão com vereadores, representantes da cooperativa e da Semma foram até o escritório da ANM, em Belém, com o intento de resolver a situação do polígono onde a Coesama tem autorização para trabalhar.

“Recebemos um polígono da ANM, mas a Semma reduziu nossa área, mesmo assim nós nos adequamos a essa determinação. Tínhamos 23 hectares, mas foram reduzidos para não chegarmos à praia”, disse ele.

Quem explica sobre o porquê dessa burocracia é Janine Lage, em entrevista ao Correio de Carajás. É a ANM quem define, a priori, a área de exploração. Com a autorização em mãos, o solicitante busca a Semma para obter uma licença de operação. A secretaria não tem poder para autorizar que a exploração seja feita fora do polígono, mas pode diminuí-lo.

“Se a ANM te deu uma autorização de um quadrado, de um retângulo grande, eu posso reduzir por conta do interesse social. A Praia do Tucunaré, por exemplo, é muito importante, então eu posso reduzir este polígono”, esclarece.

A diretora detalha que a autorização da Semma é muito criteriosa e que os técnicos são cautelosos para que, independente do período de cheia ou seca do Rio Tocantins, a área de exploração não atinja a Praia do Tucunaré. Ainda que eventualmente o polígono da ANM alcance o banco de areia, a secretaria faz o recorte e limita a área.

“Quando você vê, na época da cheia, parece que (a praia) está mais longe, aí ela sobe e parece estar mais perto. A gente cansa de receber denúncias, ‘estão explorando em cima da praia’, mas não estavam”, diz Janine Lage.

Quem também levantou este assunto foi Célio, durante a reunião da Comissão Minerária na Câmara. Naquele momento, ele argumentou sobre denúncias frequentes de moradores do bairro Francisco Coelho, popular ‘Cabelo Seco’, no núcleo Marabá Pioneira. É comum que essas pessoas entrem em contato com a Semma para denunciar alguma draga com localização irregular, aparentando estar muito próxima da Praia do Tucunaré. “Às vezes parece que o barco está na praia, mas não está, por isso há várias denúncias inverídicas junto à SEMMA”, argumenta Célio.

Dragas de empresas ligadas à Coesama estão limitadas a retirar areia próximo à praia por falta de espaço fora daquele perímetro

Os impasses gerados a partir da exploração dos rios de Marabá estão longe de serem resolvidos, por isso, a Comissão de Mineração da Câmara deve continuar acompanhando a pauta, cuidando para que a Praia do Tucunaré seja preservada; as empresas que atuam no segmento tenham um local mais adequado para trabalhar e evitar a especulação de áreas.

 

 

Agência Nacional de Mineração em xeque

 

Criada em 2017, no governo de Michel Temer, a ANM substituiu o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Por lei, a autarquia é responsável por regular e fiscalizar as atividades para o aproveitamento dos recursos minerais. Contudo, a realidade é bem diversa, é o que aponta o texto de Rubens Valente publicado na Agência Pública em março de 2023 e intitulado “Cadeia ilegal de ouro só é possível com omissão das instituições, diz estudo”.

A reportagem de Valente é pautada pelo estudo “Terra rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira”, realizado pelo ISA (Instituto Socioambiental) em parceria com organizações indígenas e ambientalistas.

Ambos os textos citam uma ação civil pública ajuizada em julho de 2019 pelo Ministério Público Federal em Santarém (distante cerca de 900km de Marabá), que aponta uma “omissão institucional notória e generalizada” por parte da ANM. Naquele momento, o órgão solicitou à Justiça que fosse interrompida a emissão de Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) naquela região.

Após dois anos, agora em 2021, com “a evidente explosão contínua do garimpo ilegal na bacia do Tapajós”, o MPF entrou com uma nova ação e pediu a suspensão de todas as PLGs em três municípios: Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso, áreas onde se concentram territórios indígenas dos povos Munduruku e Kayapó.

Naquele momento, o MPF apontou que “a necessidade de intervenção do Judiciário decorre unicamente da recalcitrância dos demandados no cumprimento de seus deveres”.

Este é apenas um recorte das ações da ANM que colocam sua atuação em xeque.

O relatório do ISA expõe, ainda, uma prática conhecida como “esquentar o ouro”. Conforme o documento, “este tipo de lavagem expõe o uso especulativo dos processos minerários, em que os títulos são utilizados tão somente para lastrear o ouro extraído ilegalmente de áreas protegidas. Como o regime jurídico da PLG (no caso do garimpo) não exige pesquisa prévia, não há nem mesmo garantia da existência de jazida de ouro nesses polígonos”.

Foi uma auditoria operacional de uma unidade técnica do Tribunal de Contas da União (TCU), sobre as PLGs, que constatou o uso de títulos minerários “para legalização de substâncias minerais extraídas em áreas não autorizadas”.

Além disso, a unidade técnica observou uma grande concentração de outorgas de PLGs em nome de poucos titulares pessoas físicas. A constatação está diretamente relacionada à especulação dos títulos minerários.

O relatório cita um caso no Pará, onde apenas um permissionário detém 162 títulos, que equivalem a uma superfície acima de oito mil hectares. Para o TCU, a concentração de PLGs por um mesmo titular “está diretamente relacionada aos ‘garimpos fantasmas’ e ao esquentamento de ouro ilegal”.

Em 2023, as Terras Indígenas (TIs) Yanomami, Kayapó e Munduruku, na Amazônia, tiveram 1.409 mil hectares devastados pelo garimpo ilegal. O dado foi obtido a partir de um estudo feito pelo Greenpeace Brasil com base na análise de imagens de satélite.

Em décadas passadas, vários garimpos de diamante e ouro funcionários no leito do Rio Tocantins

Conforme o relatório do Isa, em 2021, na TI Munduruku, um número assustador foi computado por um levantamento realizado pelo Greenpeace. Um total de 6.780 hectares destruídos foram registrados.

Diante de tamanhas problemáticas, a atuação e fiscalização da ANM sobre a atividade minerária e garimpeira é de imensa importância.

Procurada pela Agência Pública na época da publicação da coluna de Rubens Valente, sobre os pontos citados no relatório do ISA, a agência de mineração afirmou que “está comprometida com a fiscalização da mineração, observando o cumprimento das determinações técnicas e legais”. Todas as nossas ações institucionais são no sentido de assegurar o pleno funcionamento do setor mineral. As ações institucionais visam garantir o cumprimento das leis e regulamentos que regem o setor mineral, e, a implementação de medidas como essas são fundamentais para garantir a transparência e a eficiência das atividades do setor.”

A ANM disse ainda que é “um dos membros definitivos da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), que consiste na principal rede de articulação institucional brasileira para o arranjo, discussões, formulação e concretização de políticas públicas e soluções de enfrentamento à corrupção e à lavagem de dinheiro, reunindo mais 80 instituições públicas pertencentes aos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e o Ministério Público”.

(Luciana Araújo)