Em meio à floresta amazônica, na aldeia Sai Cinza, localizada em Jacareacanga, um sonho parecia impossível: chegar à universidade. Para Anacildo Saw Munduruku, 33 anos, a formação acadêmica era um sonho que estava a um passo de ser perdido. Hoje professor, pesquisador e defensor da educação indígena, ele transformou sua trajetória em símbolo de resistência e luta pelo futuro da educação indígena.
Em entrevista ao Correio de Carajás, Anacildo conta, exultante, que é formado em História pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), e que atualmente cursa o mestrado profissional em Educação Indígena.
A formação superior sempre permeou os sonhos do indigena, mas, apesar do incentivo dos pais e familiares, não haviam recursos suficientes para mandá-lo estudar na cidade. Por quatro anos Anacildo ficou longe da sala de aula, conformado que seu maior desejo jamais se realizaria.
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“Eu sempre sonhei estudar na universidade pública e graças a Deus a UEPA chegou na aldeia. Foi uma emoção muito grande pra mim e pra minha família”, compartilha com a voz embargada de orgulho pela conquista. Mas, como em toda jornada de heroi, no meio do caminho Anacildo teve que enfrentar dificuldades para seguir estudando, chegando ao extremo de pensar em desistir. Contudo, sua rede de apoio – a família – o incentivou a continuar. Com isso, o indigena não só concluiu a tão sonhada graduação, ele ingressou em uma pós e agora é aluno do mestrado.
“Eu não ia fazer mais a especialização, mas surgiu a oportunidade. Deus sempre manteve a porta aberta pra mim, aí eu fiz a especialização, passei e formei e agora estou no mestrado, graças a Deus”, conta. Além de ser o local onde o sonho do indígena se realizou, a academia é também o reduto onde ele encontrou professores que o acompanham na defesa da educação escolar indígena, os direitos dos povos originários e temas como leis, diretrizes e a LDB.
O mestrado, voltado à causa indígena, reforça não apenas a identidade e missão de Anacildo como professor, mas o coloca também na figura simbólica do guerreiro. Porém, ao invés de empunhar armas e lutar contra inimigos, ele batalha pela preservação da história e da memória de seu povo. E pretende contá-las ele mesmo:
“Minha linha de pesquisa é focada em buscar a história do meu povo. Conversar com os anciãos, com os sábios, investigar o surgimento dos clãs e a origem do povo Munduruku. Quero fazer livros didáticos para trabalhar essa história”.
IMPACTOS
Professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Lucivaldo Silva da Costa acompanha de perto as transformações causadas pela presença indígena no ensino superior. Com mais de duas décadas de atuação com os Xikrin, ele afirma que esse movimento representa uma reparação histórica.
“A meu ver, a presença dos indígenas na universidade é o reconhecimento do Estado brasileiro, a partir da Constituição de 1988, de que o Brasil é um país de muitos povos, que ao longo do processo de colonização foram invisibilizados”, opina. Para ele, as ações afirmativas são um passo importante para corrigir esse apagamento, ao garantir acesso e permanência dos povos originários nos espaços acadêmicos.

Com formação em Letras e doutorado em Linguística pela Universidade de Brasília, Lucivaldo reforça que um avanço significativo só será possível quando houver equidade nas interações: “Acredito que a relação só pode dar certo se for de respeito, não pode haver assimetria”, defende. Sua trajetória acadêmica e o trabalho com línguas e culturas indígenas desde 2001 sustentam o argumento de que o espaço universitário precisa acolher, e não moldar, os saberes indígenas à lógica ocidental.
Já no contexto da aldeia de Anacildo, o sonho de aprender sobre o seu povo para ensinar sobre ele não é compartilhado por todos os estudantes. Ele expressa sua preocupação sobre o impacto que a formação superior em alguns indígenas. Principalmente naqueles que ingressaram na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
“Muitos que saem daqui da aldeia não querem voltar para cá e ficam na cidade mesmo, e muitos que saem da aldeia não querem mais ser indígenas. Isso é um impacto muito grande para nós, quando eles se formam eles ficam lá mesmo, não querem voltar para onde era a raiz deles”, compartilha o indígena em tom angustiado.
Ao partirem para a cidade, muitos levam as famílias, afastando-se de sua cultura, rejeitando suas origens e deixando de falar a língua materna. Alguns evitam os rituais, se distanciam das tradições e sentem vergonha de sua ancestralidade. Porém, apesar das tentativas de se desconectarem de sua origem, há aqueles que, impulsionados pelos professores da universidade, precisam buscar o povo Munduruku para incorporar sua cultura em suas pesquisas.
Nesse processo de ida e volta, eles recorrem a familiares aos sábios para mergulhar em busca das tradições, expressas pelos cânticos, histórias e conhecimentos. A tentativa de renegar a cultura encontra barreiras que esses indígenas não conseguem transpor, fazendo com que eles retornem para o local que tentam abandonar.
Esse regresso, que poderia representar uma reconexão com o povo, deixa um gosto amargo no coração de Anacildo: “Muitos que saem da aldeia, trazem da cidade uma cultura diferente. Eles ensinam outras coisas aos nossos jovens, ensinam a falarem outras coisas. Eles ficam incentivando nossos jovens a fazerem coisas que não são agradáveis para os nossos caciques e para a gente. Isso impacta muito a gente”, desabafa com uma tristeza tangível.
Diante dessa realidade controversa, torna-se essencial que haja professores formados dentro da própria aldeia. Para Anacildo, isso faz toda a diferença.
Antes da chegada da UEPA, a aldeia não formava professores em curso superior. Agora, 15 educadores formados na Sai Cinza atuam em diversas áreas: ciências humanas, sociais, natureza, linguagem e artes. Esse avanço é um exemplo para as futuras gerações e representa um passo essencial para o fortalecimento da educação indígena. Alguns já têm especialização, outros estão na pós-graduação, e alguns cursam o mestrado, como é o caso dele.
“Nossos caciques sempre motivam nossos jovens a não desistirem do sonho, a sempre buscarem uma qualidade melhor para nossas vidas, nossas aldeias. Isso é importante para mim, para o meu povo. Nossos caciques ficam maravilhados vendo os professores se formando em cada área, então isso é muito importante para nós”.
Ainda assim, os indígenas possuem uma alta taxa de evasão da universidade. Anacildo reconhece que falta interesse por parte de muitos estudantes que saem da aldeia trilhar os caminhos do conhecimento, principalmente aqueles que escolhem a UFOPA.
DIFICULDADES NO CAMINHO
Criados em um ambiente onde a língua munduruku é a principal forma de comunicação, os indígenas encontram desafios para compreender e aprender a língua portuguesa. Somado a isso, está o desafio de usar o computador, ferramenta essencial para apresentações e trabalhos acadêmicos.
Esse novo mundo, tão distante daquele onde foram criados, pode ser avassalador. Sem preparação para interagir com esse novo ambiente, ou por se sentirem deslocados nessa nova realidade, muitos indígenas acabam desistindo do curso, retornando à aldeia sem concluir a formação.
Seguindo essa linha de raciocínio, Airton dos Reis Pereira, professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação Escolar Indígena, avalia que as dificuldades quanto à permanência no ambiente universitário exigem políticas públicas específicas, especialmente quando os cursos não são ofertados na região ou dentro das próprias aldeias.
“Quando eles se deslocam, têm dificuldade financeira de se manter aqui. Se não tiver uma bolsa, é muito difícil. Primeiro porque estão enfrentando um outro modo de vida; segundo, porque têm que procurar um trabalho na cidade, o que não é muito fácil para quem tem uma outra cultura”, diz Airton, ao destacar os desafios impostos pela distância e pela diferença de contextos socioculturais.

Airton reitera que a presença de indígenas nas universidades públicas é insuficiente. “De uma forma geral, especialmente na UEPA, a presença (de indígenas) ainda é pequena. As universidades deveriam incentivar e possibilitar uma presença maior de pessoas indígenas nos cursos de graduação e pós-graduação, em razão da necessidade que os povos indígenas têm na formação e na qualificação acadêmica, também profissional”, afirma. Com vasta trajetória acadêmica nas áreas de História e Extensão Rural, ele defende um olhar mais atento das instituições para garantir acesso e permanência desses estudantes.
Anacildo, por sua vez, complementa essa visão ao revelar fragmentos da realidade de sua aldeia.
“Eles acabam desistindo, eu acho, porque falta mesmo interesse da parte deles. Muita gente sai da aldeia para estudar, passa um mês, dois meses, e já larga o curso. Às vezes é por causa da família, outras vezes é porque aquele ambiente não é pra eles. Depois que desistem, alguns ainda tentam outra graduação, entram em universidades particulares, mas aí enfrentam dificuldade com os recursos, não conseguem pagar, ficam devendo e acabam desistindo de novo. No fim, são poucos os que chegam até o final. Muitos ficam pelo caminho”, descreve com pesar.
Após superar a árdua travessia no ensino superior, Anacildo permanece sólido em sua jornada pela autonomia da educação escolar indígena, empenhado em tirar das mãos da Secretaria Municipal de Educação de Jacareacanga o controle sobre as escolas indígenas. Sonhando com uma estrutura feita por completo pelas mãos indígenas.
“Nosso sonho é ter nosso próprio currículo, nosso próprio calendário, de acordo com a realidade indígena. Estamos buscando isso através do nosso conhecimento, do nosso estudo nas universidades”, finaliza com paixão. (Luciana Araújo)