Eu sempre trabalhei em campo, com monitoramento e prevenção de desastres. Nosso desejo é que no futuro cada região tenha seu próprio sistema de alerta, de acordo com as características locais, de vazão de rios e transporte de sedimentos. Quando começaram as notícias das enchentes, sabia que a gente precisava contribuir. Eu e alguns colegas articulamos com a direção do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) a liberação de barcos da instituição, normalmente usados para pesquisa e ensino.
Atuamos em resgates nos bairros mais atingidos de Porto Alegre e nas cidades de Eldorado do Sul e Guaíba. Foram pelo menos seis dias seguidos de resgate. Eu já tinha participado de treinamentos, em Kyoto, onde cursei parte do doutorado na área de desastres, e no Brasil. Mas nada se compara com viver a realidade, foi algo de outro mundo. Eram muitos perigos envolvidos, como cabos de luz que poderiam enroscar no motor. Num contexto de 2,5m de profundidade de água, às vezes batia no teto de um carro submerso. Era um medo constante, mas a gente sabia que precisava ajudar.
Alguns resgates foram muito dramáticos, como o caso de um senhor com suspeita de fratura na coluna. Ele estava no segundo andar da casa, mas a maca rígida não conseguia passar, então ele foi retirado pela janela. Um resgate de um casal ficou muito na minha memória. Entramos dentro de um condomínio e o casal gritou por ajuda. Quando entraram, choraram muito, o rapaz me deu um abraço muito emocionado e disse: “Ninguém mais estava passando por aqui, e eu e minha esposa estávamos rezando, pedindo para que alguém viesse. Quando acabamos de rezar, ouvimos a chegada de vocês. Foi Deus que mandou vocês”. Isso fez o barco inteiro chorar.
Leia mais:Segurança era uma preocupação. Depois que passamos por uma loja de colchões que estava sendo saqueada, ouvimos tiros. A partir do terceiro dia, ia sempre alguém de força de segurança. A presença da polícia era importante também para o convencimento das pessoas a saírem de suas casas, pois se sentiam mais confortáveis.
Resgatamos mais de 200 pessoas, e muitos cachorros. Não existia um padrão, resgatamos as pessoas mais diversas possíveis, desde alunos da universidade a uma senhora com bolsa de colostomia, um senhor com perna quebrada e uma grávida de 9 meses. Passamos por casebres e casas maiores. Os resgatados eram levados até os portos improvisados em área seca, de onde saíam os barcos e onde havia equipe de voluntários, enfermeiros e médicos para atendimento inicial. Depois iam para abrigos ou outras casas.
Até tenho dificuldade em descrever meus sentimentos nos regates. Mas sentia que não podia de forma alguma ficar em casa. Eu, pelo meu treinamento, conseguia controlar e bloqueava as emoções durante os atendimentos. Mas quando baixava a adrenalina, em casa, vinha toda a carga emocional. A saúde mental tem que estar em dia, foi muito emocionante e exaustivo. Ao mesmo tempo, é gratificante conseguir salvar uma pessoa. A universidade está mobilizada, tem abrigo, monitoramento, estudos. Está dando um exemplo do quanto ela contribui e o quanto pode contribuir para a sociedade.
Depois, começamos a usar os barcos para levar mantimentos a quem ficava em casa, e fazer coleta para analisar a qualidade da água. Os resultados preliminares apontam índices bem alarmantes de contaminação.
O clima está mudando e os eventos extremos vão ser cada vez mais frequentes e mais intensos. Então já estou preocupado com o próximo desastre, que pode ser maior. Temos que usar esse para poder entender tudo o que pode melhorar na preparação para o próximo. No Japão, eles falam bastante que o pior desastre é sempre o que está por vir, e não o que aconteceu.
A flexibilização de leis ambientais pode ter contribuído para o agravamento. Vejo que o caminho para prevenção passa por fortalecimento da legislação ambiental no que diz respeito ao uso e ocupação do solo, proteção da mata ciliar e das regiões de cabeceira. E o sistema de proteção às enchentes de Porto Alegre, de diques e comportas, apresentou algumas falhas. Se todo o sistema tivesse funcionado, talvez a cidade teria sofrido um desastre menor.
Um dos caminhos para a gente melhorar a prevenção é fazer monitoramento hidro meteorológico e hidrometria. Precisamos monitorar mais os rios, as cabeceiras, entender os sistemas ambientais. Quando o IPH faz a previsão com os modelos, e acerta, é um trabalho que começou 15, 20 anos atrás. Investir no monitoramento para descrever bem os sistemas, e prevenir, é fundamental.
(Fonte:O Globo)