Grupos criados no Facebook e no WhatsApp para estimular a adoção de bebês viraram um verdadeiro “mercado de crianças”, em que mulheres gestantes colocam seus filhos à venda por quantias que chegam a R$ 40 mil.
Essas comunidades atraem milhares de famílias interessadas em adotar uma criança de maneira ilegal, sem aval da Vara da Infância e Juventude e burlando a fila da adoção. As ofertas chegam a ser feitas de maneira explícita nas páginas, e as negociações são realizadas depois, em trocas de mensagens privadas.
Há cerca de um ano, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) acompanha publicações feitas nesses grupos e solicitou ao Facebook a exclusão de alguns deles. Ainda assim, há dezenas de páginas em atividade, funcionando de forma aberta e sem nenhuma restrição.
Leia mais:Por meio de um desses grupos, uma mulher de Santa Catarina conheceu o casal para quem doou o filho de 2 anos; no início deste mês, essa mesma dupla foi presa por tráfico de pessoas, na zona leste de São Paulo. A mãe sofria de depressão, e a família dela notificou o desaparecimento do menino.
O Metrópoles teve acesso aos grupos e conversou com mulheres que pedem quantias em dinheiro para entregar seus filhos a outras famílias. Elas relatam dificuldades financeiras e dizem não ter condições de criar uma criança.
Em dois casos, a reportagem gravou as conversas sem se identificar; por isso, serão utilizados nomes fictícios para não expor as mulheres.
Filho por R$ 40 mil
Há duas semanas, a gestante Jéssica, de 26 anos, fez uma publicação no grupo chamado “Bio e Adotantes, não tenho condições de ficar com meu bebê” — “bio” é a forma como são chamadas as mães biológicas interessadas em doar seus filhos. Na postagem, Jéssica dizia estar à procura de uma família para seu bebê. Segundo ela, o parto está previsto para junho.
O texto recebeu dezenas de curtidas e comentários de mulheres se prontificando a ficar com a criança. Para algumas delas, Jéssica enviou mensagens, via chat privado, fazendo sua proposta.
“Vou ser direta com vc tá. Eu estou grávida de um menino e, desde o começo da gestação, procuro uma família pra mim realizar o sonho dela e ela o meu! […] A data prevista pro parto é dia 20 de junho e eu preciso achar uma família boa que fique com o bebê na saída da maternidade. Eu peço R$ 40 mil (sic)”, disse Jéssica a uma possível compradora.
Sem se identificar, o Metrópoles conversou com Jéssica. À reportagem ela mostrou exames que comprovam a gravidez.
Moradora de Diadema, no ABC paulista, a mulher afirmou que decidiu “doar” o bebê depois que o seu então marido descobriu que a gravidez era fruto de uma relação extraconjugal. Jéssica resolveu mudar de cidade temporariamente, a fim de dar à luz. Ela faz faxinas para pagar o aluguel de um quarto em uma pensão.
A gestante disse que uma mulher de Cotia já havia concordado em pagar R$ 40 mil para “adotar” o bebê. Ela teria, inclusive, solicitado uma série de exames para ter certeza de que o bebê estava bem. A adotante, no entanto, teria desistido de última hora.
“Ela ia dar R$ 40 mil na saída da maternidade. Quando chegasse a primeira semana de junho, eu ia para Cotia, para ficar em um hotel próximo dela, e o parto podia acontecer a qualquer hora”, diz a gestante. “Quando o bebê nascesse, a gente ia ver se registrava na maternidade ou no cartório. A gente ia resolver tudo em um dia só. E ela conseguiu também uma advogada que conseguiria a guarda definitiva em 3 meses.”
Segundo Jéssica, os R$ 40 mil seriam usados para alugar uma casa e bancar o sustento dos outros dois filhos que ficaram temporariamente com o ex-marido. Ela afirma que chegou a pensar em procurar a Justiça, para entrar em um processo de adoção convencional, mas mudou de ideia após encontrar o grupo no qual é negociada a venda de bebês.
“Eu comecei a ver um monte de coisa, achei um absurdo [pedir dinheiro]. Só que aí eu ia ficar me apertando [financeiramente]. Eu vi várias histórias de pessoas, tanto que pagaram quanto que cobraram. Eu pensei que seria melhor. Senão, eu teria que começar tudo do zero”, relata Jéssica.
A gestante diz que chegaram a lhe oferecer R$ 50 mil pelo bebê, mas a criança deveria ser entregue sem registro. Ela suspeitou da oferta e não aceitou. “Eu tenho muito medo de que meu filho caia na mão de uma pessoa errada”, afirma. Até a semana passada, Jéssica não havia negociado o filho.
“Quero doar meu bebê”
O grupo de Facebook no qual Jéssica anunciou o seu filho tem cerca de 1,9 mil membros e várias publicações diárias. Ele é um entre vários outros que tentam aproximar adotantes e mulheres que pretendem “doar” seus filhos, chamadas de “Bios”.
Algumas comunidades têm o objetivo de fomentar a adoção legal, seguindo todos os trâmites burocráticos exigidos pela lei. Apesar disso, nos comentários das postagens, mulheres conversam livremente sobre a “doação” de crianças em troca de ajuda financeira.
O valor, normalmente, é negociado no chat privado. “Eu preciso MT encontrar uma família antes que ele nasci (sic). 35 mil na hora da entrega da criança. Vc tem interesse?”, disse uma mulher não identificada a uma potencial compradora em um dos grupos examinados pelo Metrópoles.
Nas comunidades do Facebook, circulam links de grupos de adoção no WhatsApp. No aplicativo de mensagens, há ainda menos controle sobre o “mercado de crianças”.
A alta procura também atrai a ação de golpistas. Na comunidade “quero doar meu bebê”, por exemplo, criada em 2019 e com 3,5 mil membros, a administradora alerta que há várias pessoas se passando por doadoras na internet, para aplicar golpes e tirar dinheiro das famílias que pretendem adotar.
“Depois de tantas tentativas em grupos, estou criando um grupo só para bios que realmente querem doar seus bebês. São muitas tentativas de golpes e tem muitas mulheres tentando tirar proveito de mulheres que realmente sonham em ser mãe, golpistas sem coração”, diz a administradora da comunidade na postagem.
Golpes nos grupos
O Metrópoles conversou com a gestante Amanda, de 27 anos, acusada de aplicar golpes em outras mulheres, pedindo dinheiro para pagar exames e dívidas. Uma delas diz ter depositado cerca de R$ 900 na conta de Amanda e ter sido bloqueada em seguida.
Apesar dos golpes que Amanda teria aplicado, o Metrópoles teve acesso a um ultrassom morfológico que confirma a sua gravidez; o exame foi feito no dia 5 de abril.
Amanda mora em Rio Grande da Serra, também no ABC paulista, e pede R$ 6 mil para entregar o filho. Segundo ela, a data prevista para o parto é no início de agosto.
“Não preciso de muito. 6 mil já me ajuda. Já tenho 4 meses de aluguel atrasado. Pois devido a um deslocamento de placenta não posso trabalhar. Até o bebê nascer serão mais 2 meses atrasados +1 do resguardo, só aí já são 3.500. O restante vou investir”, conta ao Metrópoles.
A mulher sugere, no grupo, que a melhor opção para fazer o registro da criança seria dizer que o pai adotivo é o pai biológico da criança e que eles teriam tido um caso. Entidades que atuam junto à Vara da Infância afirmam que isso seria uma maneira de tentar exigir que a família adotante pague uma pensão a ela depois.
“Eu posso registrar sozinha, dar a guarda provisória para vocês e, depois de três anos, eu consigo passar a permanente. De começo eu não consigo. Ou então você pode se registrar como pai, fica até mais fácil. Ficaria 50% da guarda comigo e 50% com você. Daí eu daria os meus 50%”, oferece Amanda.
Extorsão
A presidente do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp), Cecília Reis, afirma que, em alguns casos de doação ilegal, as mães entregam os bebês, mas depois passam a extorquir a família adotante. Ela diz que, apesar disso, a maioria das situações que envolve pedido de dinheiro é golpe.
“Quando existe efetivamente um bebê, e ele de fato é entregue, essa pessoa que adota passa a ficar sob o jugo de extorsão. A real é que, a partir do momento em que você dá um ‘jeitinho’ para resolver a situação, você se coloca em risco de ser extorquido pelo resto da vida. É a boa e velha chantagem”, diz Cecília.
MP monitora grupos
Em abril de 2022, a promotora da Infância e Juventude de São Paulo Luciana Bergamo iniciou uma apuração sobre os grupos a partir de denúncias envolvendo “negociação entre gestantes que não tinham interesse em permanecer com seus filhos, e pessoas que se mostravam interessadas em recebê-los em adoção”.
Bergamo diz que, muitas vezes, as “promessas de pagamento de valores em dinheiro” nesses grupos aparecem “escamoteadas como forma de ajuda de custo para o parto ou para o deslocamento da mãe/gestante ao ponto onde se consumaria a entrega do recém-nascido”.
Ainda no ano passado, a promotora pediu que o Facebook desativasse o conteúdo de 16 grupos. Ao Metrópoles ela afirmou que a maioria deles foi removida na época, mas não há impedimento para que voltem a ser criados, como constatou a reportagem.
“Em vários dos casos, o próprio Facebook já excluiu, entendendo que os grupos existiam ao arrepio da lei e violavam as regras das plataformas. Mas nada impede que, no dia seguinte, outros grupos sejam criados. Em alguns casos, a gente buscou os administradores dos grupos. Tentamos identificar os responsáveis para conversar com eles”, afirma a promotora.
No Brasil, é crime registrar o filho de outra pessoa sem a adoção legal autorizada pela Justiça, prática conhecida como “adoção à brasileira”. Também é vetado prometer ou efetivar a entrega de filho mediante pagamento ou recompensa. As penas variam de 1 a 6 anos de prisão.
“Não há caminho alternativo”
A promotora Luciana Bergamo afirma que adotar uma criança por meios “alternativos” pode levar uma família a perder a guarda.
“Além do risco de ser vítima de uma quadrilha de tráfico humano, há 0 risco de perder a criança. Não há segurança jurídica nesses casos de ‘adoção à brasileira’ ou por pagamento”, ressalta a promotora.
Adoção legal
Para adotar uma criança, os interessados devem procurar a Vara da Infância e Juventude de sua cidade e fazer petição solicitando a inclusão no cadastro de pretendentes à adoção.
Os interessados precisam fazer um curso de preparação psicossocial e jurídica e passar por uma entrevista técnica, na qual descrevem o perfil da criança desejada. A partir do laudo da equipe técnica da Vara e do parecer emitido pelo Ministério Público, o juiz acolhe o pedido e o pretendente entra na fila de adoção.
O tempo de espera na fila pode levar anos e está relacionado à idade da criança, à cor da pele e ao histórico de dependência química dos pais. “Se uma família pretende adotar uma criança mais velha, de 7 ou 8 anos, o tempo de espera deve ser bem menor do que o tempo de espera para adotar um recém-nascido”, destaca o presidente da Comissão Especial de Direito à Adoção da OAB, Carlos Berlini.
(Fonte: Metrópoles)