A experiência de passar por um relacionamento abusivo marcou um período conturbado na vida de uma assistente paraense, de 23 anos, que trabalha em um consultório médico. Ela pede ao Correio de Carajás que mantenha a identidade dela em sigilo, devido à situação traumatizante que passou.
Ela conta que se relacionou durante um ano com o “príncipe que se transformou em agressor”. Aos poucos, o ex-namorado se mostrou possessivo, ciumento e manipulador. “Eu tinha que fazer o que ele queria, na hora que ele queria”.
Segundo ela, não havia sinais no início da relação que antecipassem o inferno que a vida se tornaria. “Meu relacionamento não começou com tapa na cara, começou com flores. Ele não me xingava no começo, dizia que eu era tudo que ele sonhava. Então como descobrir que você vive em um relacionamento abusivo quando você não sabe como é? Como se defender de quem jura te amar para sempre?”, relembra a assistente.
Leia mais:Segundo ela, o agressor psicológico convence que a culpa é da vítima, mesmo ao dizer que ela não tem culpa, apenas não é boa o suficiente ou que não é exatamente o que ele queria. Quando começou a perceber a situação, a entrevistada já havia se afastado dos amigos e começaram a ocorrer as agressões físicas, com pequenos empurrões e mudanças bruscas de humor. “O princesa dava lugar ao vadia”, conta.
Ela afirma não ter rompido a relação anteriormente por se sentir insegura. “Hoje vejo que não terminei com ele antes por medo, mas também por dependência, não imaginava como seria minha vida sem ele, até mesmo porque acreditava em todas as palavras que ele falava ao me diminuir, como se eu ainda fosse grata pelo privilégio de ter sido a escolhida”, relembra.
A história só teve um ponto final quando os pais dela, que moram em outra cidade, chegaram sem avisar na casa no casal e a encontraram trancada por ele no quarto, com a marca de um soco no olho direito. O agressor não estava na casa, havia saído com os amigos. “Quem não conhece a história comenta: tadinho, ele te amava tanto, mas você não quis”, afirma, revelando, ainda, a dificuldade social que envolveu o relacionamento abusivo.
CRIME
A violência psicológica é tipificada pela Lei Maria da Penha. A titular da Delegacia da Mulher (Deam) de Parauapebas, Ana Carolina Carneiro de Abreu, conversou com o Correio de Carajás, e detalhou as fases de um relacionamento abusivo.
Ana Carolina destaca que mais de 70% das mulheres no Brasil já viveu ou vive uma relação abusiva, mas muitas ainda não conseguem identificar este tipo de agressão, já que a relação abusiva mais fácil de ser identificada é a física. Nem todos relacionamentos abusivos, entretanto, tem como desfecho a agressão física. O relacionamento abusivo não tem classe social e qualquer mulher está sujeita a viver um relacionamento de manipulação, destaca.
De acordo com a delegada, na primeira fase de um relacionamento abusivo o parceiro tenta diminuir a autoestima da cônjuge, acusando a mulher por qualquer coisa. “Qualquer ato abusivo dele, ele culpa a vítima. Nessa fase é muito difícil conseguir entender que está em um relacionamento abusivo, por não haver agressão física. O que existe é a manipulação psicológica, a violência moral e a violência patrimonial”, detalha.
Ainda na primeira fase, afirma, é possível diagnosticar um suposto excesso de amor. “O homem tenta mostrar para a mulher que ele a ama demais, que tudo que ele faz é para protegê-la e que ninguém vai amá-la como ele e que se um dia ele terminar, ela não vai encontrar ninguém como ele”, explica.
Outro aspecto da violência psicológica, reata, é o homem não aceitar o jeito que a mulher se veste, o corte de cabelo, as características da vítima e que ela já tinha antes de conhecê-lo. “Sutilmente pede para mudar o jeito de vestir, argumentando que ficaria mais bonita, pede para mudar o corte do cabelo, a cor do cabelo. Mas sempre mostrando que é para o bem dela”.
O relacionamento abusivo, de acordo com a delegada, é uma teia que cerca a vítima e esta, ao perceber, já está com a autoestima baixa, dependente emocionalmente do abusador, ao ponto de não conseguir se ver saindo da relação. Ela perde a identidade, mudando o comportamento e passando a desacreditar na pessoa que é. Em muitos casos, o homem também passa a controlar o dinheiro da parceira. “Toda vez que ela passa o cartão dela apita no celular dele”.
Normalmente as ameaças e chantagens começam a surgir quando uma mulher descobre uma traição e ele justifica que a traiu porque ela o deixou inseguro. A vítima se sentirá culpada e tentará sempre melhorar, “só que ela precisa entender que o problema não está nela”. A delegada ressalta que os abusadores conseguem fazer com que a vítima desacredite até no que viu, alegando que a companheira tem perturbação mental e muitas mulheres começam a duvidar da própria sanidade mental e da memória.
Já a segunda fase é marcada pelo temperamento explosivo do agressor, quando a mulher tenta retomar as rédeas da vida dela e se inicia o ciclo da explosão, quando começam as agressões físicas porque o homem não consegue mais controlá-la emocionalmente, então parte para a agressão física e sexual. Amigos e colegas de trabalho conseguem detectar as agressões e, incentivada por essas pessoas, as mulheres conseguem buscar ajuda na Delegacia da Mulher, nos centros de proteção e no amparo familiar.
“Então começa a fase da lua de mel, o agressor se diz arrependido, se humilha, chora, pede perdão, promete mudança. Ela perdoa porque quer uma família, mas eles vivem um curto período de tempo, onde ele se mostra arrependido, e volta o ciclo”, pontua a Ana Carolina. A delegada diz que a mulher ainda tem vergonha de procurar ajuda quando já perdoou o agressor uma vez. “Mas nós não estamos aqui para julgar, estamos aqui para salvar ela, podem nos preocupar quantas vezes for preciso”, garante.
MACHISMO
O psicólogo Ayrk Zamiske cita que o machismo tem como base ditar os papéis do homem e da mulher, classificar o perfil da masculinidade e também o perfil da mulher na sociedade, o que está muito ligado às características de uma pessoa que submete a parceira ao relacionamento abusador.
“O homem se coloca nesse papel de dominador, no topo da hierarquia, o que hoje está sendo chamado de relacionamento abusivo”, diz, acrescentando que esta relação passa a ser uma prática de controle da dominação de um cônjuge, de repressão e dominação.
Sobre se existem diferenças nas características do abusador homem ou mulher, o especialista fala que não há estudo que comprove diferenças, “mas o que a gente observa são os objetivos de cada um em relação à dominação”. O psicólogo fala, ainda, que não existe um tratamento neste cenário.
“Não se trata de uma psicopatologia, não é uma patologia, existem terapias para serem observados esses comportamentos”, explica, afirmando ser necessário analisar a origem de tais atitudes, pois as formas de se relacionar são perpetuadas na sociedade, sendo passadas de geração em geração, e essa compreensão é feita no ambiente terapêutico. (Theíza Cristhine e Ronaldo Modesto)