Correio de Carajás

Em um ano, Escritório Social foi luz no fim do túnel a quase 300 marabaenses

Atualmente, 32 egressos estão empregados em empresas de Marabá, mas ainda há muitos desafios para vencer o preconceito/ Fotos: Evangelista Rocha

O trabalho é muito mais do que uma atividade econômica; é uma força vital que sustenta não apenas a subsistência individual, mas também molda o tecido social em que vivemos. Desde os tempos de Locke, que viu no labor a raiz da propriedade, até Marx, que o elevou à expressão máxima da humanidade, o trabalho tem sido um ponto central nas dinâmicas sociais.

Hoje, ele não apenas define a prosperidade, mas também a dignidade humana. Dignidade essa por vezes negada a determinadas camadas sociais, como a formada por egressos do sistema penal que tentam ser reinseridos em sociedade. Nesse contexto atual, o Escritório Social, em Marabá, assume um papel crucial na promoção da reintegração e do desenvolvimento pessoal. A reportagem do Correio de Carajás foi atrás de conhecer a experiência desse instrumento, que há um ano transforma a vida de quase 300 egressos do sistema prisional.

Vinculado à Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP), em parceria direta com o poder judiciário, o Escritório Social não se limita a cumprir formalidades legais; ele se compromete com uma visão mais ampla de responsabilidade social.

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O sucesso do programa é inegável: 32 egressos agora estão empregados, sendo 19 deles contribuindo para a construção da Ponte do Rio Tocantins, em um exemplo inspirador de ressocialização. No entanto, obstáculos persistem; apenas três empresas locais são parceiras do programa, destacando um desafio crucial: o preconceito na contratação de pessoas com histórico de encarceramento/ cárcere.

FAROL DE ESPERANÇA

Aos 23 anos, Iago Cardoso da Silva é o personagem de uma narrativa marcada pela determinação de não se render ao ciclo vicioso do sistema prisional. Sua jornada, moldada pela ressocialização através do trabalho, lança luz sobre a importância vital de oportunidades pós-cárcere.

Após enfrentar um ano e nove meses de privação da liberdade por envolvimento com tráfico de drogas, o jovem emergiu do sistema penitenciário com uma perspectiva transformada: “O Escritório Social é uma iniciativa muito importante porque representa uma porta de esperança para nós que estávamos presos e, ao sair, vê essa chance como uma luz no fim do túnel”.

Iago Cardoso completou nesta sexta-feira (3), 10 meses empregado

Iago encontrou nesse instrumento público um aliado crucial na transição para uma vida renovada. Mas esse farol de esperança não tem alcançado apenas Iago. Em Marabá, 280 pessoas pós-cárcere têm testemunhado a mão amiga da ressocialização por meio da tão necessária oportunidade de inserção no mercado de trabalho.

Segundo ele, o apoio do Escritório não só lhe abriu portas, mas também desafiou estigmas sociais. A narrativa de rejeição e desconfiança frequentemente associada a ex-detentos hoje é contraposta pelo apoio e solidariedade demonstrados por colegas e superiores. Em seu ambiente de trabalho, ele não é mais apenas um egresso do sistema prisional, mas um colega valorizado, parte essencial de uma equipe unida: “Não julgam o nosso passado, acreditam que a gente pode ter uma segunda chance”.

Para Iago, os 10 meses empregado no Consórcio da Ponte do Rio Tocantins (CPRT) representam mais do que uma fonte de sustento; é um símbolo tangível de sua resiliência e determinação em construir uma vida nova e digna. Ele reconhece a importância de ter sido capacitado ainda enquanto cumpria sua pena, trabalhando como ajudante de pedreiro durante o regime semiaberto.

Esse trabalho não apenas o sustentou, mas também o educou sobre a natureza ilusória do “dinheiro fácil” que uma vez o atraiu para o caminho errado: “O que eu posso dizer para as pessoas que continuam lá dentro, é que o tráfico, o crime em si, não vale a pena”.

Ele relata que a perda de seus pais foi outra provação que moldou a jornada solitária de Iago rumo à redenção. No entanto, continua mantendo a convicção de que seu futuro não está mais ligado ao passado criminoso. Sua consciência tem o orientado firmemente para longe das tentações do crime, guiada por uma nova visão de si e do mundo ao seu redor.

Iago é uma prova viva de que a reintegração social bem-sucedida não é apenas uma utopia, mas sim uma realidade alcançável com o apoio certo, como o Escritório Social. Ele desafia outros egressos a despertar para a mesma verdade: o caminho da criminalidade é uma ilusão que não conduz a nada além de mais sofrimento.

“O escritório social, para mim, é mais do que uma instituição; é um abraço de solidariedade e uma promessa de renovação”, afirma.

Questionado sobre ser seduzido a voltar para a criminalidade, Iago demonstra manter determinação. Sua mensagem para aqueles que continuam atrás das grades é clara: “Há uma alternativa, uma oportunidade de redenção, e o Escritório Social é a âncora que pode ajudar a reerguer”.

A CICATRIZ DO CÁRCERE

Após uma década atrás das grades, um período em que as sombras do passado rivalizavam com a incerteza do futuro, Roseane Gomes Santana agora faz parte de um grupo de 39 marabaenses que estão cadastrados no Banco de Talentos do Escritório Social, aguardando uma oportunidade de serem reinseridos na sociedade por meio do mercado de trabalho. Sua jornada, impulsionada primeiramente pela fé e depois pelo apoio do equipamento público, ilustra os desafios e as esperanças entrelaçadas na busca por uma segunda chance.

Foi ainda dentro dos limites do cárcere que Roseane teve seu primeiro vislumbre do Escritório. Em suas palavras: um farol de possibilidades em um mar de restrições. Cumpria sua pena, quando foi alcançada pelos programas de assistência social, onde o poder da educação e capacitação começou a moldar sua visão de um futuro além das celas.

Com a ajuda do Escritório, Roseane Gomes está terminado o ensino médio e já realizou cursos de capacitação

“Eu ainda estava reclusa, refletindo sobre o que eu tinha feito para estar lá, quando recebi a oportunidade de começar a estudar, concluindo meu ensino fundamental”, conta. É que os estudos se tornaram sua rota de fuga intelectual, uma busca por redenção que transcendeu as barreiras físicas impostas pelo sistema.

Ela fazia parte de um grupo de 111 mulheres que, atualmente, estão encarceradas na Unidade de Custódia e Reinserção Feminina de Marabá (UCRF). Quando a liberdade finalmente se materializou, há três meses, sua jornada ressocializadora continuou.

Roseane e seu marido, também egresso do sistema, encontraram apoio mútuo em uma trajetória comum de transformação. Enquanto ela ainda aguarda por uma oportunidade de trabalho, o escritório já facilitou o ingresso de seu esposo no mercado de trabalho. Um exemplo de como a reintegração não é apenas individual, mas uma conquista familiar.

“Passei 11 anos presa, tive muito tempo para amadurecer e enxergar que o mundo do crime é, na verdade, um mundo de ilusão”, conta. A sombra do crime cometido em 2010 continuou a pairar sobre Roseane, uma cicatriz moral que ela enfrentava a cada passo em direção à reabilitação. No entanto, sua determinação em aproveitar as oportunidades educacionais demonstra uma transformação interior profunda.

Hoje, ela está concluindo o ensino médio, desafiando a narrativa de que a prisão é um beco sem saída: “A ressocialização existe, sim, através do Escritório Social, com todos os recursos que nos são disponibilizados, só precisa partir da gente abraçar. E, abraçando, a gente consegue, eu estou conseguindo”, revela.

A reintegração social é facilitada pelo Escritório Social, surge como um farol de esperança em um cenário muitas vezes desolador. Onde o crime oferece uma promessa vazia, o trabalho e a educação se tornam a pedra fundamental de uma vida reconstruída.

A PERSPECTIVA DA JUSTIÇA

Caio Marco Berardo, juiz da Vara de Execução Penal de Marabá, respalda o impacto transformador do Escritório Social no processo de ressocialização de pessoas como Iago e Roseane. Para ele, o programa representa mais do que uma simples iniciativa: “É um instrumento vital para garantir a reintegração efetiva e digna desses cidadãos na sociedade”.

O juiz Caio Marco Berardo entende que o Escritório é um instrumento vital para a ressocialização

O Escritório Social, fomentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio do Programa Fazendo Justiça, opera como um elo fundamental entre os pré-egressos, egressos e suas famílias, facilitando o acesso a políticas públicas essenciais.

Ele aponta que, antes da existência do Escritório Social, os egressos enfrentavam um desafio desolador ao término de suas penas, muitas vezes sem suporte ou orientação para se reintegrarem à sociedade: “A criação desse instrumento foi uma resposta crucial para suprir essa lacuna, oferecendo assistência especializada e personalizada para cada indivíduo e sua família”.

Para Caio, a abordagem colaborativa e multidisciplinar do instrumento é essencial para garantir um resultado efetivo na ressocialização. Os serviços não se limitam ao âmbito do trabalho, mas abrangem também a saúde, moradia e assistência social, documentação civil, reconhecendo que a reintegração plena dos egressos demanda uma abordagem holística.

Responsável por adotar providências para o adequado funcionamento das unidades prisionais como magistrado da área penal, ele acredita que o Escritório Social não apenas proporciona oportunidades práticas, mas também restaura a esperança e a dignidade dos egressos, mostrando que a sociedade está disposta a acolhê-los de volta e ajudá-los a construir um futuro melhor.

A MÃO FEMININA QUE ALCANÇA PRÉ-EGRESSOS E EGRESSOS EM MARABÁ

Apesar de o Escritório Social ser um nome masculino, a mão que coordena o instrumento em Marabá é feminina e é de Sulair Nunes. A assistente social compartilha com a reportagem sua jornada de dedicação ao trabalho com egressos do sistema prisional, destacando a importância de oferecer uma segunda chance aos que buscam mudar suas vidas após o cumprimento das penas.

Seu relato revela um olhar humano sobre uma realidade muitas vezes estigmatizada: “No Brasil não existe pena perpétua, essas pessoas não podem ser condenadas pelo resto da vida por algo que fizeram sete ou 10 anos atrás, como já testemunhei aqui”.

Coordenadora do Escritório Social em Marabá, Sulair dedica sua vida a esses pré-egressos e egressos

Ela conta que a busca por parcerias e oportunidades de emprego para egressos em Marabá é incansável, que enfrenta diariamente o desafio das portas fechadas que muitas empresas impõem a indivíduos com histórico de encarceramento. Ela entende que o preconceito e a falta de compreensão são obstáculos reais, mas persiste na missão de conectar egressos a oportunidades de emprego, documentação civil e desenvolvimento pessoal. É uma realização como cidadã e profissional colaborar efetivamente com o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e com a diminuição da reincidência criminal por meio da ressocialização.

“Apesar do sucesso alcançado com os egressos empregados, apenas três empresas são atualmente parceiras do Escritório Social em Marabá: CPRT, Construtora Brasil e JF Construtora”, diz, enfatizando que a reintegração de egressos não apenas beneficia indivíduos, mas toda a sociedade, ao reduzir a reincidência criminal e promover uma comunidade mais inclusiva.

Por último e não menos importante, ela conta que a atuação do Escritório Social não se limita à pós-liberdade; Sulair destaca o trabalho dentro das instituições prisionais no regime semiaberto, preparando os pré-egressos para uma transição bem-sucedida de volta à sociedade. A parceria com instituições públicas para garantir cursos de capacitação profissional e documentos civis é fundamental para facilitar essa reintegração: “Muitos saem e se quer têm certidão de nascimento, identidade, porque perderam ou porque tiveram fim com seus bens materiais”.

(Thays Araujo)