Quase 4 anos após ser interrompido por um pedido de vista do então ministro Teori Zavascki, o julgamento da descriminalização do porte de drogas para uso pessoal será retomado no dia 5 de junho de 2019 pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
A data foi agendada pelo presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, depois que o ministro Alexandre de Moraes anunciou que havia concluído seu voto, liberando o processo. O julgamento, assim, voltará ao plenário com o voto de Moraes, que “herdou” o pedido de vista ao assumir no Supremo a vaga deixada por Zavascki, morto em um desastre aéreo em janeiro de 2017.
Os ministros do STF terão que decidir se é constitucional criminalizar o usuário de drogas. O alvo do Recurso Extraordinário (RE) 635659 é a Lei de Drogas (11.343/2006), que determinou que o usuário não pode ser preso em flagrante, como ocorria até então, e definiu para esses casos a aplicação de penas alternativas, como prestação de serviços comunitários.
Leia mais:Quando o julgamento foi interrompido, o placar estava em 3 votos a favor da descriminalização. O debate está centrado em duas questões fundamentais: o respeito às liberdades individuais e a necessidade de estabelecer critérios objetivos que diferenciem usuários e traficantes.
Diz o parágrafo 2º do artigo 28 da lei: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
Embora fale em “quantidade apreendida”, a lei não estabelece parâmetros. Organizações favoráveis à descriminalização argumentam que essa distorção levou usuários a serem presos como traficantes, contribuindo para o aumento da população carcerária brasileira.
Segundo dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), do Ministério da Justiça, de 2006 a 2014 houve um aumento de 339% nas prisões por tráfico de drogas no País, passando de 31 mil para 138 mil após a Lei de Drogas.
Setores críticos à descriminalização, por outro lado, argumentam que o tráfico se adaptaria facilmente a um novo padrão.
O voto de Alexandre de Moraes
Alexandre de Moraes tem perfil conservador e deixou-se filmar cortando pés de maconha com um facão em 2016, em visita a uma cidade paraguaia na condição de ministro da Justiça do governo Michel Temer. As imagens foram amplamente criticadas por especialistas, por mostrarem o ministro agarrado a discussões ultrapassadas, “enxugando gelo”.
Já no STF, manteve o processo por quase 2 anos em seu gabinete e encomendou um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) para embasar seu voto. À imprensa, o ministro adiantou apenas que seu parecer pretende rebater “lendas urbanas” que cercam o tema.
De acordo com Fernando Corrêa, diretor-técnico da ABJ, o estudo analisou dados de ocorrências por porte e tráfico de drogas registradas pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo entre 2003 e 2017.
“A posição da ABJ para qualquer questão de política pública é contribuir para a tomada de decisão mais informada possível, com base nos fatos, usando os melhores dados que estiverem disponíveis”, disse Corrêa ao HuffPost Brasil.
Embora não tenha antecipado as conclusões do estudo, Corrêa afirmou que a entidade defende que seja estipulada uma quantidade que diferencie o que é porte de drogas para consumo pessoal do que é tráfico.
“Somos favoráveis à utilização de um critério objetivo de separação. Um critério muito rigoroso, porém, pode produzir mais distorções do que efeitos positivos. É preciso considerar todas as questões envolvidas, os padrões de uso, os perfis de crime”, disse Corrêa.
Cristiano Maronna, secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD) – rede composta por mais de 40 entidades que lutam pela reforma da política de drogas e que é amicus curiae na ação -, diz que o voto de Moraes “preocupa”.
“O novo governo tem interesses muito conservadores, e o Alexandre de Moraes costuma jogar em grupo. O fato de ele ter liberado o voto dele só agora, a meu ver, não é por acaso”, afirma.
“Nosso receio é que o Alexandre de Moraes esteja alinhado com o Osmar Terra [ministro da Cidadania de Jair Bolsonaro] e com o próprio Sérgio Moro [ministro da Justiça] para transformar o julgamento da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas em uma oportunidade de institucionalizar uma nova política de drogas, que estabeleça tratamento compulsório por meio de audiências de custódia, coisas assim”, completa Maronna.
Crítico ferrenho da descriminalização, o ex-deputado Osmar Terra é autor de um projeto de lei que prevê internação compulsória de usuários de drogas. Quanto a Moraes, o ministro já disse, em entrevista concedida à GloboNews em dezembro de 2017, que “o usuário deve ser tratado sempre como uma questão de saúde pública, independentemente de criminalização ou não”.
Como já votaram os ministros
Quando o pedido de vista interrompeu o julgamento, em setembro de 2015, três ministros já haviam votado e todos eles foram favoráveis à descriminalização: Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Faltam os votos de Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Dias Toffoli.
Mendes, relator do processo, defendeu a descriminalização de todas as drogas e ressaltou o respeito à liberdade individual. “A criminalização da posse de drogas para consumo pessoal afeta o direito do livre desenvolvimento de personalidade em suas diversas manifestações”, afirmou.
Fachin seguiu pelo mesmo caminho e destacou os “limites da interferência estatal sobre o indivíduo”, mas restringiu seu voto à maconha.
Barroso também limitou sua decisão à maconha, mas foi além: fez comentários sobre o fracasso da guerra às drogas, propôs critérios objetivos para distinguir consumo de tráfico e defendeu o cultivo caseiro de cannabis. “Vinte e cinco gramas e até seis plantas fêmeas de maconha por pessoa”, afirmou.
O voto dos demais é incerto, mas o perfil dos ministros sugere algumas pistas. Lewandowski, por exemplo, é um grande crítico da política de encarceramento em massa e foi em sua gestão como presidente do Supremo que o julgamento da descriminalização das drogas foi pautado pela primeira vez, em 2015.
O ministro Fux, embora não tenha antecipado seu próprio voto, disse em 2017 em entrevista à BBC que “pelo menos a descriminalização do uso da maconha o Supremo vai chancelar”.