Correio de Carajás

Decreto para participação das Forças Armadas nas eleições é praxe no Brasil e não confere mais força ao atual presidente da República

Enganoso
É enganoso vídeo que circula nas redes sociais sobre o decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) que autoriza o uso das Forças Armadas nas eleições deste ano. O autor do conteúdo interpreta o documento de forma equivocada ao sugerir que o decreto seria resultante de poder especial conferido ao presidente. Na verdade, essa é uma prática comum no processo eleitoral brasileiro e a possibilidade de requisição do auxílio dos militares pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que precisa ser autorizado pelo presidente em exercício, está prevista na legislação desde 1965.
Conteúdo investigadoVídeo de três minutos no qual um homem fala sobre documento assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) que autoriza a participação das Forças Armadas no processo eleitoral deste ano. O conteúdo é acompanhado da legenda “Acabou a palhaçada do TSE, Bolsonaro assina decreto colocando os militares em definitivo na apuração e fiscalização das eleições desse ano” e tenta fazer o espectador crer que o presidente teria autoridade máxima para decidir sobre a atuação das Forças Armadas durante o período do pleito.

Onde foi publicado: TikTok, Facebook e WhatsApp.

Conclusão do Comprova: É enganoso o vídeo que cita o decreto presidencial que autoriza a participação das Forças Armadas no processo eleitoral de 2022. Apesar de um documento com esse teor ter sido de fato publicado no Diário Oficial da União em 12 de agosto, o tom empregado pelo advogado e candidato a deputado estadual por Santa Catarina Alexander Brasil (PL) retira a informação do contexto e induz a uma interpretação distante do sentido original. A publicação do decreto, ao contrário do que sugere o advogado, não confere ao presidente Bolsonaro mais força em relação a outras instituições que fazem parte do processo eleitoral, como o TSE.

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Ao citar o decreto, o autor da publicação afirma: “Presidente acaba de uma vez por todas com esse impasse, de os militares terem de ficar pedindo penico e autorização para fazerem parte de uma comissão do qual o próprio TSE tinha aberto a possibilidade e convidado os militares para fazer parte. Agora não estão mais lá por conta de um convite, agora estão definitivamente através de um decreto presidencial“.

O decreto presidencial, neste caso, é um procedimento praxe nos processos eleitorais brasileiros, não sendo novidade nas eleições de 2022. Documento semelhante foi assinado, por exemplo, pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e pelo ex-presidente Michel Temer (MDB). A construção da narrativa escolhida se insere no contexto atual, fomentado pelo próprio presidente da República, e consequentemente por seus seguidores, com a intenção de desacreditar o processo eleitoral e a segurança das urnas eletrônicas.

O conteúdo classificado pelo Comprova como enganoso é aquele retirado do contexto original e usado de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos de maior alcance nas redes sociais. Até o dia 17 de agosto, o vídeo publicado no TikTok teve 103,2 mil visualizações, 11,4 mil curtidas, 1,3 mil comentários e 5,2 mil compartilhamentos. No Facebook, o conteúdo alcançou 124 mil visualizações, 15,3 mil curtidas, 2,8 mil comentários e 8,8 mil compartilhamentos até a mesma data. O vídeo também está circulando em grupos de WhatsApp.

O que diz o autor da publicação: Alexander Brasil foi procurado por e-mail, mas não retornou até o fechamento desta verificação.

Como verificamos: O primeiro passo da verificação foi reunir informações a respeito do decreto assinado por Bolsonaro autorizando o uso das Forças Armadas nas eleições deste ano. Para isso, consultamos o documento no Diário Oficial da União, através do site do governo federal, reportagens da imprensa nacional (CNN BrasilG1Agência BrasilBrasil de Fato e Metrópoles) e uma nota publicada pelo TSE.

A equipe também apurou o contexto do afastamento do coronel Ricardo Sant’Anna do grupo de fiscalização do código-fonte das urnas eletrônicas, por meio de notícias (CNN BrasilFolha e Ministério da Defesa) e do ofício do TSE, e buscou informações sobre Alexander Brasil através de pesquisas no Google. Para confirmar dados do autor da postagem, a equipe consultou também a plataforma DivulgaCand2022 do TSE.

Por fim, entramos em contato com o TSE, o Ministério da Defesa e o autor da publicação.

O decreto de Bolsonaro

Publicado em 11 de agosto e assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos ministros da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, general Augusto Heleno, o decreto nº 11.172 “autoriza o emprego das Forças Armadas para a garantia da votação e da apuração das eleições de 2022”.

Isso significa que, caso seja necessário, o TSE pode solicitar o apoio das Forças Federais durante o processo eleitoral deste ano. Conforme o documento, caberá ao Tribunal determinar os locais de atuação e o período pelo qual os militares serão utilizados.

O decreto, porém, não dá às Forças Armadas nenhuma posição especial em relação a quaisquer outras instituições participantes do processo eleitoral. Trata-se de uma convocação comum e não uma novidade das Eleições 2022 ou ainda o resultado de poder especial conferido ao presidente Bolsonaro.

Ao Comprova, o Ministério da Defesa informou que “historicamente, o emprego da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nas eleições tem contribuído para a segurança dos locais de votação, tendo em vista a possibilidade de insuficiência dos efetivos policiais para atender às requisições dessa natureza”. O órgão ainda ressaltou que a medida “é habitual e decorre de pedido do próprio TSE”.

Tradicionalmente, a atuação das Forças Armadas nas eleições também envolve o apoio logístico e o transporte de urnas eletrônicas, pessoas e materiais para locais de difícil acesso.

Procurado a respeito da determinação dos locais de atuação dos militares nas eleições deste ano, o TSE não retornou.

Autorizar participação das Forças Armadas nas eleições é comum

Ao contrário do que sugere o vídeo aqui investigado, a atuação das Forças Armadas na segurança do processo de votação e apuração dos votos é uma prática habitual no sistema brasileiro. A possibilidade de requisição do auxílio dos militares pelo TSE, inclusive, está prevista na legislação desde 1965. O Código Eleitoral (Lei 4.737/65) estabelece que cabe privativamente ao Tribunal “requisitar Força Federal necessária ao cumprimento da lei, de suas próprias decisões ou das decisões dos tribunais regionais que o solicitarem, e para garantir a votação e a apuração”.

Apesar de ser responsabilidade do TSE solicitar o uso das Forças Armadas, é preciso uma autorização específica por parte do presidente da República para que isso ocorra.

De acordo com matéria publicada pelo TSE, a primeira reunião para alinhar a atuação das Forças Federais nas eleições de 2022 ocorreu em abril e contou com a presença de autoridades, como o ex-presidente do TSE, ministro Edson Fachin; o subchefe de Operações do Estado Maior das Forças Armadas, general Rezende de Queiroz; e o diretor-geral da Corte Eleitoral, Rui Moreira.

Os pedidos de auxílio das Forças devem ser encaminhadas ao TSE pelos Tribunais Eleitorais Regionais (TREs), os quais devem também justificar a solicitação, apontando fatos que revelem eventuais riscos de perturbação das atividades eleitorais.

O decreto assinado por Bolsonaro autorizando o emprego das Forças Armadas no pleito deste ano, portanto, trata-se de uma convocação comum que, inclusive, já foi realizada anteriormente por outros presidentes.

Nas eleições gerais de 2018, por exemplo, o então presidente Michel Temer (MDB) também permitiu o uso das Forças Armadas por meio do decreto nº 9.379, assinado em 21 de maio. Naquele ano, militares atuaram em 598 localidades nos dois turnos – 513 municípios no primeiro e 357 no segundo.

Medida semelhante também foi adotada em 2014 pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Na época, as Forças Armadas empregaram 30 mil militares em 326 cidades, a fim de garantir a ordem e ajudar na logística das eleições.

O uso das Forças Federais também pode ser solicitado nos pleitos municipais. Em 2012, o TSE aprovou o envio de militares para três municípios do estado do Amazonas: Maués, Manicoré e Novo Airão.

O papel das Forças Armadas no processo eleitoral

As Forças Armadas, composta pela Marinha, Aeronáutica e Exército, atuam na segurança das eleições, seja por meio do transporte de urnas, fiscalizando o sistema eletrônico de votação, apoio logístico no transporte de pessoas e materiais e auxiliam a manter a ordem pública, dentro da operação de Garantia da Votação e Apuração (GVA). As Forças Armadas também integram a lista das entidades fiscalizadoras, legitimadas a participar das etapas do processo de fiscalização, e estão incluídas na Comissão de Transparência das Eleições (CTE), seguindo as normas e etapas definidas pelo TSE. Contudo, propõem que o Teste de Integridade das urnas eletrônicas, realizado atualmente pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), seja aperfeiçoado.

O Ministério da Defesa solicitou ao TSE, no dia 10 de agosto, a entrada de nove técnicos militares que atuarão junto à equipe militar que fiscaliza o sistema eletrônico de votação e realizarão uma inspeção do código-fonte até o dia 19 de agosto. A adição de outros técnicos militares na fiscalização ocorreu por conta do afastamento do coronel do exército Ricardo Sant’Anna da CTE pelo então presidente do TSE Edson Fachin após a publicação de notícias falsas em desfavor do sistema eleitoral em uma rede social, reveladas em reportagem do site Metrópoles, na última quarta-feira (10).

No vídeo investigado, o advogado menciona que “Não é mais uma simples autorização do TSE. Com o decreto presidencial, toda essa semana que aconteceu aí de embate, do TSE querendo expulsar o militar lá de dentro e agora os militares dizendo ‘não, ele vai continuar aí dentro e vamos mandar mais 8 ou 9’”. Questionado pelo Comprova se o coronel permaneceria no CTE, o TSE respondeu que Ricardo Sant’Anna foi descredenciado e permanece afastado da comissão.

A CTE, juntamente com o Observatório da Transparência das Eleições (OTE), foi instituída na Portaria nº 578 com o objetivo de “ampliar a transparência e a segurança de todas as etapas de preparação e realização das eleições”.

O contexto da desinformação

A postagem em questão se insere em um contexto de disputa de narrativa fomentado enfaticamente pelo próprio presidente da República com a intenção de desacreditar o processo eleitoral e a inviolabilidade das urnas eletrônicas.

Em 2021, Bolsonaro intensificou o ataque às urnas eletrônicas sob a alegação – sem provas – de fraude nas eleições de 2018. O presidente chegou a sugerir que o voto registrado pelos eleitores nos equipamentos eletrônicos fossem impressos e depositados em uma urna física, que serviria como uma alternativa segura de consulta em eventuais alegações de fraudes após o pleito ou resultado da apuração neste 2022.

Em maio daquele mesmo ano, a Câmara dos Deputados criou uma comissão especial para avaliar a Proposta de Emenda Constitucional 135/2019, de autoria da deputada federal que concorre à reeleição, Bia Kicis (PL), aliada do presidente da República. A proposta da deputada se assemelhava ao ideal repetido à exaustão por Bolsonaro. O contexto, à época, abriu espaço para uma campanha, sobretudo nas redes sociais, entre apoiadores do presidente pelo voto impresso.

Em 10 de agosto de 2021, a Câmara dos Deputados rejeitou e arquivou a PEC 135/2019. Apesar da derrota, o presidente da República e seus apoiadores mantêm a retórica de fraude nas eleições 2018 e fragilidade no sistema em relação ao pleito de 2022.

Em 18 de julho deste ano, o presidente novamente reforçou o discurso de desconfiança em relação ao sistema eleitoral brasileiro, desta vez, durante um encontro com embaixadores de países com relações diplomáticas com o Brasil.

Quem é o autor da publicação investigada?

Alexander Alves Pereira, conhecido como Alexander Brasil, é advogado e, atualmente, disputa vaga de deputado Estadual em Santa Catarina, pelo Partido Liberal (PL), conforme registro no TSE.

Em 2020, Alexander Brasil foi candidato a prefeito de Florianópolis (SC), pelo PRTB. Ele teve 6.982 votos e não foi eleito.

Nas redes sociais, ele se define como “cristão, conservador, patriota e defensor incansável das liberdades individuais”. Alexander Brasil é apoiador do presidente Jair Bolsonaro e líder do movimento “Vem Pra Direita Floripa”.

Por que investigamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais sobre as eleições presidenciais de 2022, a pandemia de covid-19 e políticas públicas do governo federal. O vídeo aqui verificado tenta inflar um cenário de disputas entre o presidente Bolsonaro e as Forças Armadas, e o TSE, por meio de uma interpretação equivocada de um decreto. Peças de desinformação como esta podem atrapalhar o processo eleitoral, pois enganam e confundem a população, que deve fazer sua escolha a partir de dados contextualizados e verdadeiros.

Outras checagens sobre o tema: Peça de desinformação semelhante alegando que Bolsonaro teria determinado a participação das Forças Armadas nas eleições, independentemente da decisão do TSE, já foi verificada pelo Boatos.org.

Recentemente, o Comprova mostrou que é falso que TSE tem 32 mil urnas grampeadas com o objetivo de fraudar a eleição, que montagem de 2018 voltou a circular para atacar sistema eletrônico de votação e que não há registro no TSE de suposta pesquisa que impede entrevistado de votar em Bolsonaro. Além disso, o Comprova também produziu um material explicativo a respeito do funcionamento e da fiscalização dos códigos-fonte das urnas eletrônicas.

Desde 2020 o Correio de Carajás integra o Projeto Comprova, que reúne jornalistas de 41 diferentes veículos de comunicação brasileiros para investigar conteúdos enganosos, inventados e deliberadamente falsos sobre políticas públicas, eleições e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens.