Na semana passada, repercutiu na mídia brasileira a notícia de que a pastora e ex-deputada federal Flordelis, condenada a 50 anos e 28 dias de prisão em regime fechado por participação no homicídio do marido, teve sua pena reduzida em 177 dias por conta da sua participação em cursos e leitura de livros na prisão.
O recurso que beneficiou Flordelis está presente na Lei de Execução Penal desde 2011.O uso desse benefício é uma alternativa eficiente e de baixo custo ao tradicional recurso da remição de pena através das horas trabalhadas, hoje pouco aplicada por conta da falta de recursos e infraestrutura nas prisões. Mas assim como não consegue prover trabalho, nosso sistema penitenciário também ainda está longe de dar aos presos uma estrutura adequada que permita acesso aos livros.
👉🏾 De acordo com o texto da Lei de Execução Penal, a cada livro lido o preso tem direito a quatro dias a menos em sua pena. O limite por ano é de 12 livros. Com um limite máximo de 48 dias a menos na pena a cada ano.
Leia mais:O objetivo desta mudança da lei não era transformar a comunidade carcerária em um círculo de intelectuais e leitores contumazes. Não que isso não fosse possível, mas a ideia central era dar estímulo aos presos e contribuir com seu processo de reintegração à sociedade, permitindo a eles suprir com os livros o que não receberam na escola.
Mas a questão é a grande distância entre o mundo ideal e a realidade quando se fala no tema prisional. Quem conhece as penitenciárias do Brasil sabe das péssimas condições da maioria delas. Fica distante pensar em um mínimo de estrutura que permita um acervo literário à disposição dos presos. Sem contar no grande preconceito que existe na sociedade em dar qualquer direito que seja, tanto a um preso provisório quanto a um condenado.
Tratar a questão da leitura além do foco meramente do sistema prisional envolve muita reflexão. Isso sem considerar que além dos espaços adequados para a leitura ainda existem desafios jurídicos, econômicos e até políticos. Tudo que envolve dignidade e benefícios aos presos é mais demorado. Presos são invisíveis à sociedade e muitos preferem que seja mesmo assim.
No contexto educacional, os dados revelam um abismo. Números do ano passado do Censo Nacional de Práticas de Leitura no Sistema Prisional mostram que 53% dos presos brasileiros não possuem o Ensino Fundamental completo ou são analfabetos. A leitura para remição de pena está, de alguma forma, envolvida com a própria instituição escolar, ou com a falta dela.
A realização deste censo foi uma entre muitas iniciativas do Programa Fazendo Justiça, uma parceria feita entre o Conselho Nacional de Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Um dos objetivos era mudar pelo menos um pouco o quadro dantesco que em que se encontram muitas das prisões brasileiras.
Os idealizadores do censo se basearam na Constituição brasileira que prevê a educação como um direito fundamental. E também o texto da própria Lei de Execução Penal dá o direito às pessoas privadas de liberdade à educação e cultura. A lei diz que os presos têm direito e acesso a livros e bibliotecas. E que periodicamente um censo fosse feito justamente para apurar as condições dos acervos bibliotecários.
Leis não são cumpridas
Os desafios para garantir que um preso tenha acesso aos livros seguem no campo jurídico. E apesar de a lei ser única, ela é aplicada de forma diferente dependendo de quem são os presos leitores e as regras que cada instituição penal cria para que a lei seja cumprida.
Ou seja, embora a lei permita a possibilidade de remição de pena pela leitura, nem sempre ela ocorre, muitas vezes falta o básico. Uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), feita no ano passado, mostra que apenas 11 dos 27 estados brasileiros declaram ter estrutura para implantação de bibliotecas. Com isso, somente 31,5% dos presos, um a cada três presos, conseguem reduzir os dias da pena por meio da leitura.
A peregrinação para se conseguir adequar à lei da leitura não para por aí. Além dos custos para a implementação das bibliotecas uma questão que até hoje não foi resolvida é a criação de um sistema de gestão eficiente para controlar a leitura dos presos.
Como ter a certeza de que ao pegar um livro para ler o preso de fato se dedicou às páginas com atenção? E qual a retenção de conhecimento ao fim do livro? O preso pode escamotear o sistema apenas alegando que leu o livro, mas na prática ele o usou como forma de redução da pena. Difícil, mas não impossível, fazer esse controle. Começando pela vontade política.
Voltando ao básico: nem todas as unidades prisionais do Brasil têm bibliotecas. É preciso fazer projetos, obras, definição de espaço nas unidades. E depois disso a contratação de bibliotecários. O custo não está previsto nos orçamentos das Secretarias de Administração Penitenciária. Antes de criar bibliotecas, os gestores das prisões estão preocupados em evitar fugas, rebeliões, separação de presos por facções.
(Fonte:G1/Por Rossaly Beatriz Chioquetta Lorenset*)
*Rossaly Beatriz Chioquetta Lorenset é professora e pesquisadora da Universidade do Oeste de Santa Catarina, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
**Este texto foi publicado originalmente no site do The Conversation Brasil.