Correio de Carajás

Cultura e tradição indígena padecem às margens da rodovia e ferrovia

Os mais de 1.300 membros da Terra Indígena Mãe Maria, vizinha a Marabá, se dividem continuamente na disputa por recursos repassados pela mineradora Vale. Em 23 anos, passaram de uma para 30 aldeias

Aldeia Kyikatêjê foi a primeira a ser desmembrada dos Parkatêjê, mas atualmente existem 30 aldeias na TI Mãe Maria/ Fotos: Evangelista Rocha e Ulisses Pompeu

Ao longo dos 62.975,85 hectares da Terra Indígena Mãe Maria (TI Mãe Maria), mais de 1.300 indígenas se dividem em 30 aldeias que atualmente permeiam esse território.

Eles são parte do povo Gavião, das etnias Akrãtikatêjê, Kyikatêjê e Parkatêjê, mas não são apenas moradores daquela região. Eles guardam a cultura e tradição dessas comunidades.

E ali, naquela área que deveria ser protegida por todos, diversas ameaças rondam a existência do Povo Gavião. E o capitalismo é apontado como a principal.

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Em um território que briga por sua existência e conservação com diversos “predadores externos”, como o linhão da Eletronorte, a BR-222, a ferrovia e o “homem branco”, a duplicação da estrada de ferro da Vale é mais uma peça que disputa nesse tabuleiro de xadrez que se tornou a Terra Indígena Mãe Maria.

DESAFIOS PARA A UNIDADE

Em 1986, o povo Gavião negociou com a mineradora Vale uma indenização pelos danos causados pela estrada de ferro que corta a TI com uma linha férrea de 18 quilômetros. O convênio possui pagamento mensal e não tem prazo determinado.

Durante as pesquisas para essa reportagem, o CORREIO apurou que o recurso é, também, um dos motivos pelos quais as novas aldeias estão sendo criadas, uma vez que o valor repassado pela Vale deve ser dividido entre todas as aldeias da TI.

“Porque antes a nossa cultura era forte, quando o capitalismo era fraco”. A afirmação é dita por Tônkyre Akrãtikatêjê, que atende pelo nome não indígena Kátia Silene Vandenilson, de 53 anos. Ela é a cacica da Aldeia Akrãtikatêjê e uma das principais lideranças femininas desse povo.

Kátia recebeu o CORREIO em sua casa, dias antes de partir para a Costa Rica, onde recebe um prêmio por seu trabalho de empreendedorismo sustentável e preservação da floresta

Ela é direta ao compartilhar que a principal adversidade de seu povo, para conservar sua cultura e tradições, é o contato dos indígenas com o dinheiro.

“E ainda vamos ter o impacto maior, com a duplicação da ferrovia. Isso só aumentou mais a divisão da aldeia. Tá todo mundo preocupado e pensando como é que nós vamos voltar a nos unir”.

Assim como Silene, o cacique da Aldeia Kyikatêjê, Pepkrakte Jakukreikapiti Ronore Konxarti, conhecido pelo nome não indígena Zeca Gavião, 57 anos, reconhece que o benefício financeiro é importante, mas não é tudo.

Zeca entende que o recurso é necessário para os indígenas, mas eles precisam se preparar para o dia em que ele não estará mais disponível. “Ele é importante, mas não pode ser o Deus do meu povo”.

O que antes era uma única aldeia que reunia em seu cerne três povos, hoje em dia se transformou em 30 comunidades distintas.

“Depois que entrou o capitalismo, os três grupos começaram a se dividir”, lamenta Silene. Ela e Zeca Gavião demonstram um certo descontentamento ao refletirem sobre essa expansão.  

“O Gavião pensa na coletividade”, diz o cacique. Ele argumenta que essa divisão não faz parte da cultura de seu povo. A cacica, por sua vez, elabora que as cidades ao redor da TI estão crescendo e, como consequência, sufocam aquelas comunidades.

Zeca Gavião conversou com o CORREIO em uma tarde, enquanto se preparava para treinar o Gavião Kyikatêjê, time de futebol profissional

“A terra, o território não crescem e o povo continua se multiplicando”. A afirmação também pode ser usada em uma análise sobre a divisão da TI Mãe Maria em dezenas de aldeias.

Os mais de 62 mil hectares da reserva (que equivalem a duas vezes a área da cidade de Fortaleza – CE) são pequenos quando comparados com as fazendas e municípios da circunvizinhança da terra indígena. À medida que novas aldeias vão surgindo, o espaço vai se tornando cada vez menor.

FRONTEIRAS E VIGILÂNCIA

Ainda que a TI esteja dentro do perímetro do município de Bom Jesus do Tocantins, é de Marabá que ela está mais próxima. Apenas o Rio Flexeira separa o território indígena da área urbana do Núcleo Morada Nova.

O Rio Tocantins é outro ponto de demarcação dessa fronteira. Mas para alcançá-lo os indígenas precisam passar por cima dos trilhos da ferrovia, já que sua linha corre paralelamente ao rio, o que dificulta o acesso a este importante recurso natural.

Apesar de ter sua área muito bem delimitada, a TI ainda sofre com invasores. Seja para roubar sua madeira ou sua caça – nas palavras dos próprios caciques -, pessoas não indígenas adentram as terras do povo Gavião e levam embora pedaços dos tesouros dessas comunidades.

A TI não tem vigilância em suas extremidades, uma vez que as aldeias estão localizadas próximas à rodovia, e isso contribui para que invasores se sintam livres para ultrapassar as fronteiras.

“A última gestão (federal) não marcou os limites da terra, agora estamos solicitando para que essa nova gestão faça. Assim poderemos realizar nossa vigilância, tentar inibir a entrada no nosso território. Porque são vários tipos de coisa que eles tiram daqui”, desabafa Zeca Gavião.

Aldeia dos Akrãtikatêjê tem menos casa e é uma das mais próximas de Marabá

IMPACTO SOCIOCULTURAL

Para além da divisão física do povo Gavião, o choque sociocultural com o “homem branco” também cobra seu preço.

“Antes nós ficávamos de calcinha, sem blusa, muitos andavam sem roupa. Não tinham muita oralidade, não falavam em português, era na língua (timbira, da família linguística jê)”, relembra Kátia Silene.

Essa invasão cultural é outra controvérsia que desgasta o tecido social do povo Gavião.

Estando localizada às margens da BR-222 e fazendo fronteira com Marabá e Bom Jesus do Tocantins, os habitantes da TI Mãe Maria têm acesso fácil a tudo que esses municípios podem oferecer – de bom ou de ruim.

Tanto Kátia quanto Zeca refletem sobre as doenças dos não indígenas que se alastraram nas aldeias, como a diabetes. O consumo desenfreado de bebida alcoólica também é citado por eles, com muita preocupação.

A manutenção da cultura e das tradições encontra na modernidade uma outra barreira. A tecnologia já está inserida dentro das aldeias e marca novos hábitos.

“Atualmente, para conseguirmos uma reunião ou uma confraternização entre nós mesmos, para fazer um trabalho de interação, encontramos dificuldade”, lamenta o cacique Zeca.

Desabafo esse ao qual Kátia faz coro ao compartilhar que as reuniões entre as lideranças das aldeias, na maioria das vezes, são feitas através do WhatsApp.

Mas ainda há esperanças quanto ao futuro do povo Gavião. A cacica e o cacique, cada um ao seu modo, encontraram formas de manter as aldeias fortes e a cultura viva a partir da preservação de seus costumes.

O respeito aos velhos, que possuem conhecimento suficiente para encher uma biblioteca; a realização de jogos indígenas, um momento de comunhão entre as comunidades; a transferência de sapiência na formação de novos líderes; e a conservação da língua tradicional são alguns dos fragmentos que eles lutam para preservar para as gerações futuras.

(Luciana Araújo e Mirella Carvalho – estagiária)