Correio de Carajás

Cronistas do fatalismo

Acordo. Levanto da cama com o peso dos dias, aquele fardo invisível que só jornalistas de redação entendem. Tomo banho para espantar o sono, mas é a frieza da rotina que realmente me desperta. Visto meu uniforme que é preto – chega a ser tragicamente cômico – um reflexo do meu ofício. Uma segunda pele de luto constante. Ligo meu computador e conecto o WhatsApp comercial. Notícias chegando como sempre, sempre pontuais, sempre urgentes, me puxam para dentro do dia.

A primeira manchete não demora a chegar: um motociclista bateu em uma mureta e morreu antes das sete da manhã. Em um grupo de WhatsApp de amigos, uma repórter mais nova lamenta, quase como quem chora pela perda de alguém próximo. Leio a mensagem, mas meu coração não reage. É bizarro. Não é que eu seja insensível – quem me conhece pode jurar que é exatamente o contrário – mas há algo em mim que, dentro dessa profissão, se endurece a cada notícia trágica. A repetição esvazia. O mesmo tipo de acidente, o mesmo tom de notícia, o mesmo desfecho. No trabalho, já vi a morte tantas vezes que ela se tornou uma visitante rotineira.

Difícil falar sobre tudo isso e não pensar em “Construção”, em que Chico Buarque escreve e canta sobre o trabalhador que se desfaz na rotina, no concreto da vida, até que não é nada além de uma peça da engrenagem. Ele cai do andaime como se caísse de um pedestal, como se ele fosse menos um ser e mais uma função. Ele é pedra, tijolo, argamassa. Nós, jornalistas, somos os cronistas do fatalismo, nos tornamos verbo, manchete, estampa. As tragédias vão se amontoando, criando camadas de desapego e cansaço em nós.

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O trabalhador é devorado pelo seu próprio suor. Vê sua vida contada em horas e pagos em décimos de segundo de sua vida que, no fim, servem para comprar o almoço de hoje, enquanto a vida passa sem muito significado. Todos nós, trabalhadores, somos tijolos da grande construção de uma sociedade que nos aliena até nos apagar. E aqui estamos nós, jornalistas, narrando essas mortes diárias, noticiando até que elas percam o sentido para nós mesmos. É a tragédia sendo vendida em retalhos. Cada manchete é um tijolo, cada notícia é mais uma camada nessa parede que erguemos entre a gente e o sentimento.

O motociclista que morreu hoje não terá o nome lembrado por muito tempo. Amanhã vai surgir outro caso, outra morte, e ele será substituído. Esse é o destino do trabalhador: ser consumido e esquecido. E nós, na redação, testemunhamos, sem cair da mureta, mas caindo na indiferença, na repetição. Nos tornamos operários da notícia, erguendo paredes de letras para uma sociedade que nunca se importa o suficiente. Aliás, cada dia se importa menos.

Thays Araujo é jornalista e dá primeiros passos na arte de produzir crônica

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.