“No meio do macumbal, havia uma galinha preta. Finada. Ah, dona Ana não contou pipoca. Mal dobraram a esquina, foi lá e furtou a falecida e voltou para casa correndo. Na mesma madrugada, catou taliscas e acedeu o fogareiro”.
DONA ANA MARIA COMEU uma macumba e prosperou na vida. Estava cansada de um dia comer ovo, noutro sardinha ou carne de lata. Pindaíba de Jó. Trabalhar ajumentadamente pra garantir a mistura. Chegar no fim do mês e deixar tudo na bodega. Cadernetinha. Dava, somente, pra sair do prego. Sobrava quase nada. Troquinho. Tostões que mal compravam o dindin de depois do almoço. Repugnância da conserva.
FOI ASSIM. ELA PASSOU QUASE dois meses sonhando em comer galeto e farofa de sobrecu. Mas não tinha cara pra ir ao açougue, nem à esquina do Frango Dourado. A visita repentina de uns parentes do Sudeste fez com que se endividasse além da conta na mercearia do Seu Carlos Eduardo. Daí sacrificou outros credores. E o pior, mesmo assim, não escapou da língua das visitas e das vizinhas, nojentas.
Leia mais:NO QUINTAL DELA, SÓ HAVIA pintos comprados na feira. Roubar os frangos do vizinho, que dormiam na goiabeira, era dar na vista. Não era tempo de bingo e festa da padroeira. E mesmo se fosse, teria dinheiro pra comprar uma cartela ou botar ponto em rifa? Difícil para ela, que não só lavava roupas uma vez por semana.
UM TORMENTO. GALETO! Brasa, fumaça nas ventas, farofa de sobrecu e uma Brahma! Sonhava acordada. Dormia e no meio da noite se sobressaltava. Água na boca, mastigação da língua e tomação de gosto. Um franguinho assado! Na madrugada do desespero ouviu arrumação, vinha da rua um tititi. Bodejado de comadres e gemidos.
CORREU AO BASCULANTE e sem aceder a lamparina (a Celpa tinha cortado a luz), espiou a marmota. Um despacho de catimbozeira do mal. Reconheceu, inclusive, uma das mulheres daquele ritual. Dona Cris, que tinha a sobrancelha bem aparada, unhas encarnadas e era gorda bem feita. Namorava com homens casados e vivia destroçando a vida alheia no bairro.
NO MEIO DO MACUMBAL, havia uma galinha preta. Finada. Ah, dona Ana não contou pipoca. Mal dobraram a esquina, foi lá e furtou a falecida e voltou para casa correndo. Na mesma madrugada, catou taliscas e acedeu o fogareiro (o gás tinha acabado). Ferveu água, depenou a bicha, sapecou os canhões, extirpou as tripas, separou o cacho de ovinhos e meteu-lhe um espeto de churrasco. Do sobrecu ao tronco.
NÃO SAIU DO PÉ do mormaço e, quando cheirou a galeto, empurrou o pau a comer. Comeu como se fosse morrer dali a pouco. Roeu até os pés, dedim por dedim. Refestelou-se, empanturrou-se e não conseguiu lavar roupa no dia seguinte, porque estava empanzinada. Às patas a patroa, que estava satisfeita aquele dia. Estava com uma dor no pé no estômago e já havia tomado chá do olho da goiabeira, Elixir Paregórico e Gotas Arthur de Carvalho. Não conseguia parar de obrar e se retorcer.
PENSOU NOS EBÓS, seria castigação. O catimbó queria o troco? Sabia-se lá! Aconteceu o avesso. De hora pra outra, prosperou vendendo Avon. Deixou de comer ovo, sardinha e carne de lata. Agora era chã de dentro, coca-cola de litro, picolé da Maguary, Bife à Cavalo na Quaresma e macarronada com carne moída aos domingos. Continuou furtando galinha de despacho. E ainda choveu homem na soleira da porta.
Ah, dona Ana Maria… tantas por aí querendo a sua sorte!
(Ulisses Pompeu)
* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira