Correio de Carajás

CRÔNICA OURIÇO CHEIO – Miséria e grandeza do amor de Dona Carla

“Ela era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado”.

Carla nasceu menina azeitada no interior do Piauí. Cresceu por lá e só saiu quando, aos 17, o primeiro homem a arrastou para a cozinha do garimpo do Crepurizão, em Itaituba. Amou, cozinhou, garimpou, brigou e se escafedeu quando o macho quis lhe dar uns tapas nas ventas. Não era mulher de aguentar calada tamanha brutalidade.

Quando se viu, estava em um bairro periférico de Altamira, onde outro homem lhe chamara de meu bem. Pescavam pacu, piabanha e mandi no final de tarde e comiam chibé na beira do Xingu, onde o único filho nasceu e se chamou Osvaldinho, em homenagem ao pai.

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A vida estava calma demais e, doze anos depois, como num piscar de olhos, viu o marido sendo levado para cumprir pena por um assassinato que cometera e nunca lhe contara. Pronto, estava na rua de novo. E agora, com um filho de 8 que precisa de teto e comida.

Lembrou-se que em Marabá tinha uma prima que poderia lhe ajudar. Chegou por aqui no auge de Serra Pelada e o dinheiro corria solto. Não encontrou o endereço da prima, mas avistou um cabaré na Cidade Nova que todos chamavam de Casa de Tábua. Foi por lá que aquietou-se. Ganhou dinheiro – de dia e de noite – e conseguiu fazer o menino espichar.

Mas foi numa tarde de sexta, quando ela ariava panelas no lavatório, que escutou o papoco de 38. Tinham acabado de matar o filho na porta de casa. Dona Carla ficou sem chão. Não quis velório, não quis amigos por perto e nem viver. O cabaré ficou em luto por três dias.

Mas, ela não pisou mais os pés por lá. Era 1991 e acabou indo parar em uma fazenda na região de Eldorado, para voltar a cozinhar para homens. Por ali ficou doze anos peregrinos. Viu empregados desaparecerem quando reclamavam que o saldo na cantina estava errado.

Foi para a rede com três deles, mas não teve mais filhos. As agruras da vida lhe impuseram a esterilidade aos 40. Fazia amor sem amar. Sorria sem estar alegre. E conversava com os patrões sem querer falar.

Aos 50 já estava na cidade de volta. Vivia na casa de famílias a cozinhar, lavar e passar. Fazia de um tudo, até trocar cueiros dos filhos dos outros. Quando foi considerada “desnecessária”, lhe despediram e ela não teve para onde ir.

No final da década de 2000, Dona Carla foi a Itupiranga e conseguiu trazer de lá uma aposentadoria como lavradora. Pagou quitinete até quando pode. Há quatro anos, mudou-se para um abrigo de idosos, onde os amores reapareceram.

Primeiro foi Seu Zé. Um colega sorridente com quem trocava confidências durante o dia e beijinhos à noite, quando todos os cuidadores tinham ido embora e só um ficava por lá.

Durou nove meses e dois dias e só acabou quando Zé descansou numa madrugada chuvosa, gemendo e afagado por sua amada.

Carla recolheu-se de novo. Passou dois meses sem querer comer direito. Falava pouco e já tinha desistido de viver. Foi um outro idoso, também na casa dos 70, quem procurou dar-lhe novo ânimo para ver o futuro, com uma frase que, em sua pressa estouvada, logo soube decifrar: “Deixe que o tempo passe e já veremos o que traz.”

E mais uma vez ela encontrou o amor, mesmo que efêmero. Na madrugada, o novo affair saía na ponta dos pés e entrava, na surdina, no quarto dela e faziam um amor de pânico, com os sapatos calçados, com tudo, e mais inclinado a ir embora quanto antes do que a cumprir com seu prazer.

Carla recobrou o ânimo de vez, comprou perfume e dormia cheirosa para esperar a madrugada chegar.

Foi assim por três meses, até que ambos foram flagrados na cama juntos. E desta vez, não foi a morte, mas outras pessoas, quem lhe separou de uma paixão. A idosa percebeu, logo, que os sintomas do amor podem ser os mesmos da covid-19 quando interrompido: febre, dor de cabeça e perda do paladar…

De novo, dona Carla?

(Ulisses Pompeu)

* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira