“Falei da mamãe e de meu pai, mas passa por mim também. Passa por adolescentes e moços com os mesmos comportamentos de achar que existe uma roupa de puta e uma roupa de mulher.”
Li uma decisão de um juiz da Comarca de Marabá, no Diário de Justiça Eletrônico, sobre comportamento abusivo em um relacionamento afetivo e fiquei com uns pensamentos pra lá e pra cá. Não imagino como uma mulher ou um homem se deixam, no caso, apanhar ou ser tirado da vida por quem diz que os ama.
Falo da violação física para me referir sobre o extremado. Mas antes do tabefe, da pisa, do empurrão, do pontapé, do murro, do acocho no braço, há um caminho tão perfurocortante quanto um segadeira.
Leia mais:É o constrangimento por atitudes e repertório de lugar comum que se perpetuam entre gerações de meninos e meninas. Principalmente, e gritante, entre meninos. Mesmo tendo sido criados por mulheres.
Nessa cadeia violenta, penso, não há uma ordem linear das coisas. Pode haver um padrão. Mesmo viva, alguma moça ou senhora pode estar morta há tempos pelos maus tratos do palavrório sem nunca ter levado um beliscão ou ter puxado fio de cabelo.
Fiquei pensando em minha sogra. E acho que poderá ficar chateada com o que estou escrevendo. Ou talvez compreenda o lado didático. Há anos, reclama de uma queimação supostamente no esôfago ou região da digestão.
E já foi a mais de uma dezena de médicos de várias especialidades. Foram feitos exames diversos, repetidos, e ainda bem que nunca deu nada. No máximo, alguma coisa próxima a uma gastrite besta ou uma dessas intolerâncias.
Mas a queimação e o desassossego insistem nos dias dela. Tenho a impressão que, aos 85 anos, minha sogra sofre de ter sido de uma geração em que poucas mulheres deram um basta na ordem machista das convivências.
Separada há mais de 25 anos, ela não quis mais nenhum companheiro. A experiência, mais ruim do que boa com o marido, a tirou do prumo e hoje esses sapos queimam a azia que nenhum médico descobre a causa ou atribui ao emocional. Pode ser.
Não irei demonizar meu sogro, não carece e muita roupa já foi lavada até quase desbotar. Mas vi cenas que talvez justificassem, ainda hoje, os desconfortos dela.
Mas no que toca o machismo e o comportamento abusivo, meu pai também não foi exemplo para nenhum dos filhos. E basta de culpar o tempo ou o tal espectro histórico. Atirou em mamãe pelo menos em duas ocasiões diferentes. E ela escapou de ambos. Testemunhei quando menino.
Talvez ali, fosse a hora da virada de quem era constrangida há tempos e se contentava com momentos de arroubos de afetos e, depois, lições de morais, crenças escrotas e padrões perpétuos de um macho heterossexual.
Falei da mamãe e de meu pai, mas passa por mim também. Passa por adolescentes e moços com os mesmos comportamentos de achar que existe uma roupa de puta e uma roupa de mulher. Um batom que não se pode usar. Uma garota que é pra casar e outra “para se comer”.
É também a história de um empresário marabaense, muito macho, rico e provedor, que se vangloriava nos bastidores de uma entrevista por ter trazido uma filha que teve fora do casamento para a esposa criar. Constrangimento.
Comportamento abusivo em um relacionamento passa pelo machismo. Mas atravessa, mais ainda, a desrespeitosa falta de noção de que não há posse nos encontros. Duradouros ou fugazes e para qualquer gênero.
Estou mapeando os meus. Sem querer ser fofo com as mulheres, com amigos e amigas, nem com quem pode se achar constrangido. Não estou impune. Não mesmo.
(Ulisses Pompeu)
* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira