Foi Cláudio Antônio, um amigo dos tempos antigos, quem me contou um diálogo com a filha de 19 anos. Andando pela Nagib Mutran, pediu que Clara se livrasse dele. A moça tomou um susto e quis iniciar uma sessão de terapia com o pai. Vez ou outra, ele serve de cobaia para a estudante do 2º ano de psicologia.
Pai…! Soltou querendo decifrar. Dar um fim no senhor? Cláudio respondeu que sim. Cortar pelo meio, dilacerar. E, encontrando qualquer vestígio dele, a filha deveria arrastar com o rodo, lavar com creolina, tocar fogo e expiar…
Disse mais. Pais, sofri para admitir, empatam muitas histórias que queremos viver e somos covardes em não arriscá-las por causa das chantagens camufladas ou julgamentos explícitos.
Leia mais:Voltou para o começo da história, ao me contar aquele diálogo. Disse que era preciso puxar pelas palavras e desenhar o desapego que propôs a ela. Não é o caso de me matar com punhal ou renegar o sangue de índio-negro-judeu-português que te passei. Mas recusar receber meus traumas, meus melindres, minhas tristezas clandestinas.
Separar-se, por aí, de pai e mãe. O que herdei de traumas, lá dos começos da vida, lá das infâncias e só fui perceber depois, não valem para os filhos. Não é que não valha, não pertence a eles.
Se minha mãe ainda se recorda com tristeza, mais de 30 anos depois, porque meu pai foi embora deixando tudo trás, esse dilema não é meu.
E até foi por tabela, mas não tenho de carregá-lo até a cremação. Mamãe é que tem de expiá-lo e sair do sombrio da coitada.
E oh coisa emperrante é a “desvontade” de não querer sair do choramingo, do miado sem fim. Ok, se o caso é médico: medicina ou divã.
Cláudio disse que havia conversado com sua mamãe, explorado nos dois o porquê do fantasma de seu pai perturbar tanto. Um homem que não a fez bem (na maior parte da história deles), que a tirou da escola, não permitiu que trabalhasse e a enfiou numa casa com seis filhos, sogra, sogro e bisavó do esposo.
E nunca foram diálogos fáceis entre ele. Choro, pragas, desditos, arrependimentos… Mas já havia ficado pra trás, distante do tempo e o vento. Mais ou menos…
Sua mamãe passou um tempo da vida acreditando que não sabia falar em público. Que não tinha nível intelectual para acompanhar um doutor formado no Direito da Federal do Pará.
Pois bem, esses enganchados são de sua mãe. Não são de Carlos e não poderia ruminá-los e repassá-los para cada filho que colocou no mundo, entre eles Carla.
A história é esquisita. Roda, roda e vamos rodando quase do mesmo jeito dos avós de pai e mãe. Reconhece, algumas vezes nele, uma voz, uma postura, uma crença, uma moral da história que viu se manifestar em sua vó, seu vô, sua mãe, seu pai. Bodejo no mesmo tom de voz e entortado de boca.
Carlos me disse, também, que alguns amigos gays que não conseguem sair do armário, plenamente, por causa das encruzilhadas dos pais. Sua avó Marieta morreu sem saber que ele havia se separado. Toda vida que chegava em sua casa, perguntava por Nonata e nunca levou Fátima para apresentá-la…
Disse à filha, naquela caminhada, que não é solidário à dor de sua mãe, que não tem vocação para se solidarizar com qualquer dor de quem seja. “Sou mais de chamar para andar na Orla, mostrar como um tronco seco lá embaixo, dito morto e abandonado, ganha outra vida por causa de um ninho de bem-te-vi.
Falta ainda dizer que se não temos nada com o que eles nos repassam de traumas, não dá pra viver sem curtir essa relação que é, também, de muitos afetos, um monte de descobertas e muito prazer.
(Ulisses Pompeu)
* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira