Correio de Carajás

CRÔNICA OURIÇO CHEIO: As pragas de Seu Arlindo para um mestiço homem

“O mestiço tinha mau hálito, um bafo de pocilga, e os caninos estragados. Não podia prestar aquele sujeito. Matutava Arlindo. Quem não preza a boca, lugar tão íntimo, tinha caráter movediço”.

Seu Arlindo falava pouco. Perguntava aquilo que achava suficiente. Não era de palavrórios. Um homem resumido, mas cheio de inesperados. Libanês que foi parido de uns desterrados que chegaram pelo Rio Tocantins na década de 1940. Chegaram, trocaram nomes, e os costumes também foram sumindo aos poucos. Mas nós também adotando muita coisa deles.

Pois bem. Quando foi casar a última das cinco filhas alvas, indagou duas coisas ao que queria a moça para família. O senhor é criatura dada a açoitar mulheres?

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Era costume, por aqui – a covardia de se levantar a mão. Principalmente para aquelas sem pai nem mãe. Ficava por isso, era assim. Vez ou outra, o bruto jurava arrependimentos. Mas menos esperava, tornava a cometer o mesmo disparate.

O mestiço tropegou na fala. Engasgou as vírgulas e bodejou incompreensível. O gringo esperou com o olhar. Não tinha botado cria na terra para os outros quebrarem os dentes. Não veio de tão longe para entregar uma delas para um espancador. Nem ele nem a mulher, nunca, deram palmada. Levantavam os olhos, era a regra.

O pretendente não convenceu, e Arlindo fez outro atalho. E o moço? O moço afirma o que dos homens que querem mandar nas mulheres?

Atarentou-se repetido. O velho esmiuçou. Pensa o que de moça que labuta? Donzela que estuda para, se um dia o homem se for, não padecer com os moleques que ficarem para trás?

Ciscou, bufou nas narinas avantajadas e iniciou com um “bem…”. Tenho, com o meu suor, pão pra vossa filha e três netos que vou fazer. Terra, umas reses e dois rios pra pescar quando quiser – de dia ou de noite. Aqui dá muito surubim, seu moço!

Por mim, você não tira o véu de Clotilde. Não é homem diferente dos daqui. Arlindo não tinha cerimônias. Fez-se ali o constrangimento da verdade e despachou.

Mas Clotilde desejava o homem. Chorou para largar o choco mas o pai não deixou. Resolveram fugir. Era moda. Era a solução. Ir pra qualquer lugar onde fosse possível viver sozinhos, mesmo sem a bênção do velho de bigode grosso.

Seu Arlindo era prático. Vivia num sítio, mas andava de cafundó em cafundó a refazer os estragados na boca dos outros. Nos confins, era comum, se fazer pé de meia para esperar a passagem do “doutor”.

E talvez, por isso, passou a julgar a índole das criaturas pelos dentes. O rapaz mais velho, cobiçador de Clotilde, retornou um dia para Marabá e, rabo entre as pernas, garantiu que nunca abandonaria a mulher de sua vida.

O mestiço tinha mau hálito, um bafo de pocilga, e os caninos estragados. Não podia prestar aquele sujeito. Matutava Arlindo. Quem não preza a boca, lugar tão íntimo, tinha caráter movediço. Uma espécie de suicida volante. Vendo-se apodrecer e nem aí.

Pela boca entravam os prazeres.

Mas um dia o sogro morreu. Entrou no banheiro, no fundo do quintal, e teve um AVC. Passou três dias com a perna dura e depois se foi. E não foi que o genro acabou de criar as outras filhas do sogro e também a sogra? Como tinha dito, pegou jacumã, pescou surubim, tucunaré e trabalhou até de auxiliar de pedreiro para manter sua palavra.

Teve ainda dúzia de filhos. Cuidava tão bem da esposa, que se o velho Arlindo estivesse vivo ficaria envergonhado do que falara. Depois, o mestiço mandou arrancar um por um os dentes imperfeitos.

Extraiu todos. A esposa ficou tão orgulhosa e enterrou a mãe aos 86 de idade, cheia de dentes de ouro. E Seu Arlindo nenhuma saudade deixou.

(Ulisses Pompeu)