Correio de Carajás

Cresce a quantidade de registros de filhos sem o nome do pai durante a pandemia

Mais de 320 mil crianças ficaram só com o nome da mãe na certidão nos últimos dois anos

Ao longo dos dois anos de pandemia de covid-19, mais de 320 mil crianças foram registradas somente com o nome da mãe na certidão de nascimento. O número de bebês sem o nome do pai no documento equivale a, em média, 6% do total de crianças nascidas no País, maior porcentual desde 2016. Os dados estão em dois novos módulos do Portal da Transparência do Registro Civil: “Pais Ausentes” e “Reconhecimento de Paternidade”.

Em números absolutos, 160.407 recém-nascidos foram registrados sem o nome do pai no primeiro ano da pandemia e 167.399 no segundo. Os recordes dos últimos cinco anos ocorreram justamente nos dois anos que têm os menores números totais de nascimentos desde o início da série histórica dos cartórios, em 2003.

Um outro índice registrado pelo portal confirma o problema: os reconhecimentos de paternidade – que podem ser feitos em qualquer momento da vida do indivíduo mediante o desejo do pai – também caíram muito durante o período de emergência sanitária, passando de 35.243 em 2019 para 23.921 em 2020 (uma queda de 32%) e para 24.682 em 2021 (uma redução de quase 30% em relação a 2019). “O que pode explicar essas diferenças são as dificuldades de deslocamento da população, o funcionamento restrito de cartórios e órgãos públicos, e a queda da renda da população”, enumerou Andreia Gagliardi, diretora da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) de São Paulo. “Outro problema, suponho, é o número de pais que morreram por conta da pandemia, sem poder registrar seus filhos.”

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Coordenadora do Núcleo de DNA da Defensoria Pública do Rio, Andréia Cardoso concorda com a colega. “A questão financeira pesa muito nessas horas. A população empobreceu muito durante a pandemia”, disse. “A mãe sai da maternidade com a criança registrada. O pai, eventualmente, vai ter de se deslocar, vai ter de ir ao cartório e, embora o serviço não possa ser cobrado, sabemos que muitos cartórios cobram.”

Prematuro
A Região Norte concentra o maior número de crianças com pais ausentes. Dos 253.667 nascidos em 2020, 21.838 foram registrados apenas com o nome da mãe. O número foi ainda maior no ano seguinte: 24.807 certidões de nascimento sem o nome do pai. E tudo indica que essa situação não tem prazo para terminar.

Um dos casos que podem ser citados é o da baiana Jussara Alves Soares dos Santos, de 39 anos, que ainda aposta na promessa dos avós paternos do filho, nascido prematuramente no dia 26 de fevereiro deste ano, para conseguir ver o menino registrado com o nome do pai.

Jussara, que sobrevive com outros dois filhos graças a um benefício distribuído pelo governo por incapacidade de trabalhar, viu seu relacionamento terminar ainda no meio da gestação. Depois disso, tem contado apenas com o apoio da própria família, apesar das insistentes idas à casa do ex-parceiro, no bairro periférico de Paripe, na capital, Salvador, onde também reside, pedir ajuda financeira.

A gravidez de Jussara foi de risco e precisou ser interrompida aos 6 meses. A criança, que nasceu com 1,25 quilo, continua no hospital e somente será liberada quando atingir os 2 quilos. O pai nem sequer foi ver a criança.

Jussara conta que enfrentar esse processo todo sozinha tem sido difícil desde o início. Ela começou a sentir muitas dores no dia 18 de fevereiro, quando procurou um posto de saúde, onde recebeu do médico um encaminhamento para uma maternidade. Entretanto, sozinha, decidiu voltar para casa. Somente no dia seguinte, quando a bolsa rompeu e as dores aumentaram, se dirigiu a uma maternidade pública acompanhada por uma irmã, e já ficou internada.

O parto, por cesariana, porém, só foi realizado uma semana depois. Passados dois dias, ela foi liberada, mas a criança ficou no hospital. Jussara diz que visita o filho diariamente e, ao mesmo tempo, continua procurando falar com o pai da criança, sem sucesso.

“Eu acredito que, depois que o menino vier para casa, ele irá nos procurar. Ele sempre dizia que tinha vontade de ter um filho homem. Já tem uma filha de 10 anos, fruto de outro relacionamento”, conta Jussara. “Além disso, os pais dele me afirmaram que ele não irá fugir à responsabilidade e vai registrar e manter o filho. Espero que isso aconteça mesmo, pois não é fácil criar uma criança sozinha e com pouca grana.”

O benefício que recebe é de um salário mínimo. Os pais de Jussara sobrevivem com renda similar e ainda cuidam de uma filha especial. Questionada sobre o que fará caso o pai não registre o filho nem assuma as despesas com a criança, Jussara responde, conformada: “Fazer o quê?”

Direito e campanha
O Sudeste, por sua vez, lidera o ranking das regiões com maior queda nos atos de reconhecimento de paternidade durante a pandemia. Em 2019, 27.279 mil pais reconheceram seus filhos após o nascimento. No ano seguinte, foram 16.054 casos, redução de 41%. E, em 2021, o número de reconhecimentos somou 14.879, 45% abaixo do nível de 2019. Não por acaso, ontem, o Colégio Nacional de Defensoras e Defensores Públicos lançou a campanha “Meu Pai Tem Nome”, para oferecer serviços gratuitos de atendimento jurídico, educação em direto e exames de DNA para reconhecimento da paternidade.

Não se trata de uma iniciativa inédita. Fernanda Santos Meirelles, caixa de supermercado de 28 anos, é mãe da Ágata Helena Meireles, nascida em agosto de 2021. Ela participou do Mutirão Direito a Ter Pai de 2021 da Defensoria Pública de Minas Gerais, quando o pai da Ágata solicitou o exame de DNA antes de aceitar colocar o nome no registro. “Nosso relacionamento não deu certo, mas eu queria muito registrá-la e recorri ao mutirão. O resultado foi positivo, com reconhecimento da paternidade registrado em cartório. Tudo de forma amigável e em um tempo rápido, uma semana. Mas, infelizmente, ele só registrou. Crio ela sozinha”, lamenta.

Ela conta que a gravidez não foi planejada e que, após a terminarem o relacionamento, decidiu seguir a gestação sozinha. “Ele sumiu e não quis saber dela quando nasceu. Por isso, registrei sozinha”, diz Fernanda. “Conversando com a minha família, chegamos à conclusão de que era importante eu registrar o nome do pai para ela ter o direito de saber quem é quando ela crescer e para que ela não se sentisse inferior em relação às outras crianças.”

Fernanda diz que, então, resolveu procurá-lo e fazer o DNA para comprovar a paternidade e registrar. “Depois, ele se afastou ainda mais. Ele não me ajuda com nada e vive a vida dele totalmente isolado da nossa. Independente de qualquer coisa, eu sempre aceitei minha gravidez. Ela sempre foi amada.”

A jovem mantém a filha com o apoio de sua família. “Concluindo, a responsabilidade é toda minha. A sociedade cria essa cultura de que a mãe cuida e a mãe faz tudo, e assim os homens ficam livres de cumprir seu papel. Os pais fogem da responsabilidade e criam a situação da rejeição e nenhuma mãe quer que o filho se sinta rejeitado”, afirma Fernanda. “O programa da Defensoria Pública tem ajudado muito nesse sentido e até mesmo com o direito a pensão, pois eu não tinha condições de buscar um advogado.”

O número de crianças sem o nome do pai no registro já foi muito pior. Em 2010, por exemplo, o porcentual de crianças registradas no nascimento apenas com o nome da mãe era de 10%. Em 2012, por decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o procedimento de reconhecimento de paternidade passou a ser feito diretamente em qualquer cartório, sem a necessidade de interferência da Justiça, desde que todas as partes concordassem com a decisão. Outras medidas que visavam a facilitar o registro e seguidas campanhas de conscientização da população, como a da Defensoria, fizeram com que o número de crianças sem os nomes dos pais no registro começasse a cair consistentemente já a partir de 2015.

Reversão
A pandemia reverteu a tendência. A comerciante Diocléia da Silva, de 42 anos, recorreu à Defensoria Pública do Rio para garantir o registro do filho Natan, de 4. Vizinhos de rua em um bairro da zona norte do Rio, ela e o pai da criança começaram a se relacionar apesar de o homem ser casado. Isso não o impediu de acompanhar a gravidez e até mesmo os aniversários da criança. Mas colocar o nome no registro de nascimento era outra história.

“Ele ficou me enrolando”, contou Diocléia. “Dizia que tinha de falar com a mulher. Para ficar comigo, não pediu permissão, mas para registrar o garoto tinha de falar com ela.”

A situação se estendeu por dois anos, até que Diocléia procurou a Defensoria. A despeito dos contratempos impostos pela pandemia, ela conseguiu colocar o nome do pai no registro de nascimento do filho. Agora, briga para que a pensão seja descontada no contracheque do pai da criança. O lado positivo, conta, é que o menino ganhou uma nova família, com avós e tios.

“Ter o nome do pai no registro é um quesito básico da cidadania”, sustenta Andréia Cardoso, da Defensoria Pública do Rio. “Saber sua origem é saber que você pertence a algum lugar, a uma família, não importa se rica ou pobre, boa ou ruim, se o pai é um médico ou um traficante. É cidadania, é direito, é justiça, é o que tem de ser feito”, afirma Andréia. “Ninguém é sozinho no mundo, todos têm uma história e o direito de conhecê-la.”

No Brasil, segundo ela, a tradição escravocrata forçava as mulheres a terem filhos sozinhas. “Este é um País que não cobra dos homens essa responsabilidade”, diz a representante da Defensoria do Rio. “E os homens se comportam como se o filho fosse só da mulher.”

COLABORARAM HELIANA FRAZÃO E MARINA RIGUEIRA, ESPECIAL PARA O ESTADÃO

(Fonte: Estadão)