Rápida, gostosa e, muitas vezes, com preços mais acessíveis que o de uma refeição saudável, a alimentação estilo fast-food avança no mundo, acompanhando o aumento da obesidade e de doenças crônicas como hipertensão e diabetes. Muito já se falou sobre os malefícios do consumo de itens como hambúrgueres ultraprocessados e batatas fritas na gordura hidrogenada. Agora, um estudo publicado na revista Clinical Gastroenterology and Hepatology associa esses produtos a uma condição potencialmente fatal, a cirrose hepática.
A cirrose é uma lesão crônica no fígado, caracterizada por nódulos e cicatrizes que bloqueiam a circulação sanguínea. Em quadros avançados, apenas o transplante pode salvar a vida do paciente. Entre as causas, estão hepatites virais e abuso do álcool. Porém, segundo a pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, onde quase 40% da população consome fast-food diariamente, o acúmulo de gordura no órgão não associado a bebidas alcoólicas já é o principal responsável pela condição.
“Muitas pessoas relacionam a doença hepática ao excesso de bebida alcoólica quando o diagnóstico é de cirrose. No entanto, essa não é a única maneira de prejudicar o órgão”, comenta Bruno Babetto, médico especialista em endocrinologia e metabologia da clínica Tivolly, em Brasília. “Ao consumir muito fast-food, biscoitos, doces e alimentos industrializados, o carboidrato se transforma em gordura e fica acumulado no órgão, e a quantidade de gordura ao redor do fígado vai aumentando, causando a chamada esteatose hepática não alcoólica.”
Leia mais:Popularmente chamada de “fígado gorduroso”, a esteatose pode ser causada pelo abuso de bebidas ou por má qualidade da alimentação, sedentarismo e excesso de peso, além de disfunções metabólicas. No estudo, a hepatologista Ani Kardashian descobriu que pessoas com obesidade ou diabetes que consomem 20% ou mais de suas calorias diárias em alimentos fast-food têm níveis severamente elevados de gordura hepática, em comparação com aquelas que ingerem menos ou nenhum produto do tipo.
Na população em geral, a equipe de Kardashian também encontrou aumento, porém moderado, de gordura no fígado quando mais de um quinto da dieta era composta por fast-food. “Fígados saudáveis contêm uma pequena quantidade de gordura, geralmente menos de 5%. Mesmo um aumento moderado pode levar à doença hepática gordurosa não alcoólica”, diz a principal autora do estudo. “O aumento acentuado da gordura no fígado em pessoas com obesidade ou diabetes é especialmente impressionante e, provavelmente, devido ao fato de que essas condições causam uma maior suscetibilidade ao acúmulo da substância no órgão.”
Os pesquisadores analisaram os dados mais recentes do maior levantamento nutricional anual norte-americano, a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição 2017-201, e avaliaram a medição do fígado gorduroso de aproximadamente 4 mil adultos, comparando os dados à ingestão de produtos comprados em lanchonetes. Dos pesquisados, 52% consumiam algum tipo de fast-food. Desses, 29% ingeriam um quinto ou mais calorias diárias desse tipo de alimento. Somente nesse grupo, o nível de gordura no fígado estava elevado.
“A associação entre esteatose hepática e uma dieta composta 20% por fast-food se manteve tanto para a população em geral quanto para aqueles com obesidade ou diabetes, mesmo após os dados serem ajustados para vários outros fatores, como idade, sexo, raça, etnia, uso de álcool e atividade física”, destaca o artigo.
Segundo Kardashian, os resultados também mostram que um consumo relativamente modesto de fast-food rico em carboidratos e gordura pode prejudicar o fígado. “Se as pessoas comem uma refeição por dia em um restaurante fast-food, elas podem pensar que não estão fazendo mal”, disse Kardashian. “No entanto, se essa refeição for igual a pelo menos um quinto de suas calorias diárias, elas estão colocando o fígado em risco.”
Tendência brasileira
Embora no Brasil não existam estudos que avaliem o impacto da fast-food na esteatose hepática, o país registra um aumento no consumo desse tipo de alimentação, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE. Comparada ao levantamento de 2017/2018, a compra de sanduíches e pizzas pela população passou de 10,5% para 17% em 2020. Além disso, um quinto das calorias diárias do brasileiro vêm dos ultraprocessados, mostrou o levantamento.
A tendência preocupa especialistas. “O consumo frequente de fast-food pode ter efeitos negativos no fígado a longo prazo, pois esses alimentos geralmente são ricos em gordura, açúcar e sal, além de terem baixo teor de nutrientes essenciais, como vitaminas e minerais. Isso pode levar a uma série de problemas de saúde, incluindo danos ao fígado”, ressalta a nutricionista Marianne Fazzi, de São Paulo. “Além disso, pode aumentar os níveis de colesterol no sangue e levar a resistência à insulina, o que significa que o corpo não consegue processar adequadamente a glicose no sangue.”
Ani Kardashian classifica como “particularmente alarmantes” as descobertas do estudo. “O consumo de fast-food aumentou nos últimos 50 anos, independentemente do status socioeconômico. Também vimos um aumento substancial nessas refeições durante a pandemia de covid-19, provavelmente relacionado ao declínio nas refeições em restaurantes com serviço completo e ao aumento das taxas de insegurança alimentar. Nossa preocupação é que o número de pessoas com fígado gorduroso tenha aumentado ainda mais desde a época da pesquisa.”
A médica disse esperar que os resultados estimulem os profissionais de saúde a investirem mais na educação nutricional dos pacientes, especialmente daqueles com obesidade ou diabetes. Embora não seja possível reverter a cirrose, pode-se evitá-la, ensina Marianne Fazzi: “A perda de peso saudável e uma dieta equilibrada podem ajudar a reduzir a inflamação no fígado e a proteger as células hepáticas”, diz.
Três perguntas para Andrea Pereira
Andrea Pereira médica nutróloga do Departamento de Oncologia e Hematologia do Hospital Israelita Albert Einstein e autora do livro Dieta do equilíbrio: a melhor dieta anticâncer.
É possível concluir, a partir da pesquisa norte-americana, que alimentos fast-food aumentam a probabilidade de cirrose em pacientes acima do peso saudável?
A evolução da infiltração gordurosa no fígado, conhecida como esteatose, pode chegar à cirrose. Hoje, existe uma grande porcentagem da população que tem cirrose por essa infiltração, e não pelo alto consumo de álcool. Então, todos os fatores que contribuem para a obesidade aumentam o risco de cirrose. Entre eles, o consumo de processados e ultraprocessados, presentes também no fast-food.
No Brasil, observa-se também um avanço da cirrose hepática por esteatose?
No Brasil, infelizmente, não temos esse dado atualizado. Porém, com o aumento da obesidade no nosso país, isso está cada vez mais frequente.
Do ponto de vista de políticas de saúde pública, qual a importância do resultado desse estudo?
Os efeitos negativos da dieta com processados e ultraprocessados já são conhecidos há alguns anos, inclusive a sua contribuição na pandemia mundial da obesidade. A associação com esteatose hepática é mais um motivo para, dentro das políticas públicas, estimularmos o ensino de nutrição nas escolas, enfatizando a importância da dieta saudável, incentivo às pessoas a cozinharem com ingredientes frescos, locais apropriados para a prática de atividade física, descontos nos produtos frescos ou industrializados não ultraprocessados e sobretaxação dos ultraprocessados, entre outros. Tudo isso leva a uma melhor saúde e prevenção de doenças.
(Fonte: Correio Braziliense)