Cantor, compositor, filósofo, pesquisador. Aos 36 anos, o baiano Tiganá Santana divide seu tempo entre Salvador, Brasília, São Paulo e as viagens internacionais para promoção das suas músicas e pesquisas acadêmicas. O músico compõe e canta em kikongo, kimbundu (línguas da Angola e do baixo Congo), português, inglês, espanhol e francês, e foi o primeiro compositor brasileiro a gravar canções em línguas africanas.
A história de Tiganá com a filosofia, a música e a ancestralidade começa muito cedo. Aos 9 anos, sonhava em ser escritor e até venceu um concurso literário na escola com um poema de cunho social. “Ainda me lembro do título, era Perverso sistema”, relembra. “Eu tinha o hábito de fazer livros manuais grampeados. Eu sempre fui um curioso do mundo, me interessava por muitos assuntos, era até difícil escolher uma disciplina favorita na escola”, conta.
Aos 11 anos, lembra, foi impactado pela imagem de João Gilberto tocando violão. Foi assim que se interessou também por música. O instrumento foi um dos poucos pedidos que fez aos pais na infância. Era uma criança de poucas solicitações. Mesmo sendo de uma família com boas condições financeiras, não sentia necessidade de coisas materiais. “Eu já tinha o hábito de escrever, mas, paulatinamente depois do contato com a música, os textos foram se tornando canções. Para mim, já não havia tanto sentido escrever sem música.”
Leia mais:Mesmo que a mãe desejasse a carreira de diplomata para o filho — “ela tinha o desejo da quebra da hegemonia eurocentrada do Itamaraty” —, Tiganá tomou outro caminho. Se formou em filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, atualmente, é doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução (Departamento de Letras Modernas) da Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa em torno das sentenças proverbiais bantu-kongo do pensador congolês Bunseki Fu-Kiau.
A música foi ocupando um lugar íntimo e central. As dimensões sociais e políticas que atravessam sua experiência como indivíduo e membro de coletividades foram o combustível para suas obras com corte e profundidade. Estreou com o álbum Maçalê (2009), o primeiro registro fonográfico brasileiro de composições autorais em línguas africanas. Quatro anos depois, nasceu o trabalho The invention of colour (2013), gravado na Suécia e benquisto pela crítica. A revista inglesa especializada Songlines, por exemplo, deu 5 estrelas para o trabalho de Tiganá e o classificou dentro dos 10 melhores discos do mundo no ano de 2013.
Logo depois, lançou o álbum duplo Tempo & Magma (2015) gravado no Senegal após uma residência artística promovida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Os trabalhos mais recentes são os singles Vida Código/Meios, em que regrava tema do bloco afro Ilê Aiyê em dueto com a mãe, Arany Santana, e repagina música do primeiro álbum. O quarto disco está previsto para ser lançado em 2020.
Filosofia africana
Se Nietzsche buscou inspiração nas figuras europeias clássicas de Apolo e Dionísio para suas proposições sobre arte, Tiganá recorre a figuras como os orixás e a filósofos africanos contemporâneos para pensar a cultura afro-brasileira.
A composição da música, em francês, Le mali chez la carte invisible (O Mali no mapa invisível, em português) traz uma narrativa contracolonial. Tiganá desestrutura a língua francesa, explica, para dar resposta à violência sofrida por povos africanos colonizados por franceses. Há ritmo na fala de Tiganá, ele conversa pausadamente, quase que solenemente, pensa nas palavras certas antes de cada resposta. O discurso faz quase uma reverência afetiva aos seus alicerces africanos, aos seus familiares e ancestrais.
“Podemos aprender um mundo com as diversas filosofias africanas. Estão baseados em um pensar que inclui uma prática e um comportamento. Em muitos desses pensares, há um senso de comunidade que é absolutamente fundamental”, detalha. “Para eles, é impossível existir se não for em comunidade. Pensar desse modo já nos coloca em um outro lugar, sobretudo, ao dialogar as questões de sociedade.”
Entre outras variáveis, ainda mais violentas e graves, para Tiganá, a sociedade brasileira perde por romper com as referências históricas. “Faz parte de uma política de Estado enfraquecer, na memória e na consciência, determinadas referências e pertencimentos, de referências de linguagem, espiritualidade e filosofias. Foi o que tornou o projeto colonial bem-sucedido. Há outras insurgências, também importantes, mas, em geral, é isso que nos estrutura”, explica. “Lembremos que temos apenas 131 anos de abolição. Tivemos três vezes mais tempo de escravidão”, destaca.
Para Tiganá, é isso que torna a questão do racismo profunda no Brasil. “A escravidão brasileira é a primeira da história da humanidade baseada no racismo científico e no fenótipo. É a partir disso que surgem as outras questões do Brasil, por exemplo, o fato de não haver nem mesmo nas expressões artísticas a presença epistemológica negra é a prova de que o racismo se trata de algo muito mais profundo”, diz.
Transgressor da cadeia musical monocromática, Tiganá redesenha com a voz doce e grave as pontes entre o Brasil e o continente africano e aposta em cantar as outras possibilidades de estar no mundo: “Justamente por viver na pele um Estado racista é preciso retomar as línguas africanas, trazer esses pensares e reafirmar que somos pessoas e temos alma”. (Correio Braziliense)