Os padrões de beleza e a percepção da sociedade em relação aos corpos estão sempre mudando. Se os quadros do pintor flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640) foram aclamados por retratar a beleza das curvas acentuadas do início do século 17, na década de 1960, a britânica Twiggy ganhou os holofotes como uma das primeiras top models magérrimas a estampar capas de revista.
E enquanto em séculos passados o excesso de gordura e a obesidade já foram considerados símbolos de riqueza e saúde em meio a epidemias de desnutrição, hoje muitas pessoas gordas sofrem ataques e preconceito.
Mas, afinal, quando e como a gordura e os corpos mais volumosos passaram a ser depreciados?
Leia mais:A socióloga e professora da Universidade da Califórnia Irvine, Sabrina Strings, estuda há anos esse tema. E, segundo a tese desenvolvida por ela, o surgimento da gordofobia estaria ligado ao início da escravidão africana na Europa e América.
O tráfico de negros africanos como escravizados foi uma das principais atividades comerciais dos países dominantes no período de 1501 a 1867. Antes disso, segundo Strings, os padrões de beleza na Europa — especialmente os femininos — eram muito similares àqueles vistos em muitas obras renascentistas: corpos mais cheios e com muitas curvas.
Mas segundo a tese defendida pela pesquisadora, o padrão de corpo ideal teria passado a ser mais magro e longilíneo a partir do momento em que os escravizados, tirados à força da África, começaram a ser considerados “gordos demais” ou julgados pela quantidade de alimentos que ingeriam.
“Durante o Renascimento, que também coincidiu com a ascensão do comércio de escravizados, nasceu na mentalidade europeia uma conexão entre negritude e gordura”, diz Strings à BBC News Brasil.
“Os europeus passaram a visitar as colônias e disseminar a ideia de que os negros comiam demais e, como resultado, tendiam a ser mais gordos.”
Aqui, segundo explica a socióloga, há também um elemento que é constantemente discutido por pesquisadores de uma área de estudos conhecida como pós-colonialismo.
Segundo esse ponto de vista, em seu esforço de conquistar novos territórios, os europeus teriam promovido uma ideia de contraste em relação aos povos colonizados.
Ou seja, de que eles eram exatamente o oposto dos africanos, sul-americanos e asiáticos nativos em termos religiosos, morais e até físicos.
Portanto, se os negros eram mais encorpados, os brancos precisavam buscar a magreza.
“Os europeus se viam como mais racionais, lógicos e disciplinados. E por isso decidiram criar um padrão de beleza para suas mulheres que fosse representativo daqueles que consideram seus ideais e valores”, opina a professora da Universidade da Califórnia Irvine.
“Assim, por volta do século 18, foi disseminada a ideia de que as mulheres, em particular, deveriam ser esbeltas e que esse era o padrão a ser desejado pelos homens”.
Ainda segundo a socióloga, mesmo os cientistas da época pregavam a ideia de que as mulheres africanas eram mais propensas a engordar do que as europeias.
“Dizia-se que os homens da África gostavam de suas mulheres robustas e a imprensa europeia divulgava supostos eventos culturais realizados no continente que eram descritos como festivais destinados a engordar as mulheres”.
‘O IMC não é uma ferramenta confiável’
O ideal de beleza magro foi sendo reforçado e adaptado aos diferentes períodos ao longo da história, mas segundo Sabrina Strings, a associação entre racismo e gordofobia nunca deixou de existir.
“As mulheres não-brancas são vítimas mais frequentes da gordofobia, especialmente nos Estados Unidos”, diz a pesquisadora, que é americana.
Segundo ela, essa relação ficou ainda mais evidente durante a pandemia de covid-19, quando, para tentar explicar porque mais membros da comunidade afro-americana estavam morrendo da doença nos EUA, muitos pesquisadores e médicos passaram a citar o excesso de peso, a má alimentação e a falta de exercícios físicos como causas.
“A narrativa de que o peso dos negros é um prenúncio de doenças e da morte há muito tempo serve como uma perigosa distração das verdadeiras fontes de desigualdade — e isso está acontecendo novamente”, diz.
Estudos realizados entre a população americana já mostraram que as taxas de sobrepeso e obesidade são maiores nas comunidades negras, especialmente nas mulheres.
Mas para Sabrina Strings, esses dados devem ser analisados com cuidado, já que o principal índice usado para calcular o peso ideal de cada pessoa, o IMC (índice de massa corporal), não traduz da forma correta todas as especificidades e diferenças corporais da população mundial.
“O IMC não é uma ferramenta confiável. Sabemos que existem muitas variações físicas entre pessoas de sexos e cores diferentes, então qual o sentido de estabelecer um único padrão para todos?”, questiona a pesquisadora.
A fórmula do IMC divide o peso do indivíduo pelo quadrado de sua altura. Os resultados são divididos em cinco faixas, que classificam as pessoas como abaixo do peso, peso saudável, sobrepeso e obeso.
Strings alerta, porém, que essa fórmula foi desenvolvida com base em dados restritos e que, portanto, não reflete a realidade de boa parte da população mundial, ainda que seja considerada padrão pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por diversos países.
O índice foi criado pelo matemático belga Lambert Adolphe Jacques Quetelet na década de 1830, que usou dados de companhias de seguro médico europeias para chegar até a fórmula. “Quem possuía seguro médico naquela época eram homens brancos de classe média”, diz a socióloga.
A discussão sobre as limitações do IMC não é nova e vêm crescendo na comunidade médica há alguns anos. Segundo especialistas, o índice não leva em consideração a composição corporal e tampouco reflete necessariamente o estado de saúde de uma pessoa.
Para a socióloga da Califórnia, usar somente uma fórmula como base para todos é não só uma forma de racismo, mas também prejudicial para os próprios serviços de saúde prestados a diferentes grupos.
“Sempre ouvimos que obesidade causa diabetes, mas nas comunidades negras essa relação está ficando cada vez mais fraca. Ou seja, outra coisa está causando diabetes e não sabemos o que é”.
A relação entre peso e classe social
Sabrina Strings também ressalta que há uma conexão muito forte entre o sobrepeso e as condições financeiras de uma pessoa.
“Existe uma forte relação entre peso e classe social que é contra-intuitiva. Tendemos a pensar que uma pessoa de mais baixa renda não teria dinheiro suficiente para comer, mas a verdade é que os alimentos ultraprocessados são muitas vezes mais baratos”, diz.
“E não é só uma questão de peso. Esses alimentos não só engordam mais, como também são menos saudáveis pela enorme quantidade de hormônios, sal e outros químicos que contêm”.
Para a pesquisadora, o combate às desigualdades sociais e raciais deveria ser prioridade não só na luta contra a obesidade e as doenças associadas, mas também na batalha contra a própria gordofobia.
Há outras teorias?
Há quem acredite, porém, que a origem da gordofobia está relacionada a mais do que um único fator.
Uma dessas correntes, por exemplo, atribui o surgimento desse tipo de preconceito a um fascínio pela antiguidade clássica durante o século 18.
A burguesia teria sido influenciada pelo impulso de se parecer com os gregos e romanos e de gostar de corpos mais magros e musculosos.
Segundo especialistas, as figuras encorpadas de Rubens pouco a pouco deram lugar a nus mais suaves e esbeltos na arte neoclássica. Simultaneamente, a moda passou a comercializar roupas em medidas menores, para se assemelhar à escultura antiga.
Outra teoria aponta a influência dos primórdios literários do Romantismo no final do século 18 como elemento que pode ter influenciado a valorização da magreza.
Muitas das obras desse período apresentavam uma personagem fictícia, feminina ou masculina, dotada de uma espécie de “magreza fatal” e uma vilania convincente. Essa figuras normalmente eram descritas como indivíduos de rosto marcado, estutura alta e longilínea e muita energia.
E apesar de pouco ortodoxa, acredita-se que essa magreza extrema acabou se tornando popular justamente por sua morbidez e sugestão de práticas proibidas e preocupações profanas.
Mais recentemente, a comunidade médica passou a ser apontada por muitos como responsável por vilanizar a obesidade e, por consequência, estimular a gordofobia.
(Fonte:BBC News)
Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c721j8j91lwo