Quando o escritor chinês Liu Yongbiao foi condenado no ano passado por espancar quatro pessoas até a morte em uma pousada, talvez não tenha sido uma surpresa tão grande para seus leitores.
No prefácio de seu romance de 2010, intitulado The Guilty Secret (“O Segredo Culpado”, em tradução livre), Liu dizia que já estava trabalhando em sua próxima obra literária – sobre uma autora que comete uma série de assassinatos terríveis e consegue escapar.
No fim ele acabou não levando o projeto adiante, embora já tivesse um título em mente: The Beautiful Writer Who Killed (“A Bela Escritora que Matava”, em tradução livre).
Leia mais:Após ser preso, ele teria dito à emissora de TV chinesa CCTV que algumas de suas obras foram de fato inspiradas nos assassinatos que cometeu em 1995 – entre as vítimas, estava o neto de 13 anos dos donos da pousada.
Liu não é o primeiro autor a cometer um crime e usá-lo em sua obra de ficção. Em 1991, o escritor holandês Richard Klinkhamer matou a esposa e entregou um manuscrito macabro a seu agente, cujo título traduzido, “Quarta-feira, dia de carne moída”, poderia ter como subtítulo “Sete maneiras de matar sua esposa”.
Muitos crimes da vida real também encontraram outros caminhos para chegar à ficção, por meio de escritores cuja imaginação é capaz de reviver histórias que não testemunharam.
Do pioneiro romance de não-ficção A Sangue Frio, de Truman Capote, a sucessos mundiais como O Quarto de Jack, de Emma Donoghue, e As Garotas, de Emma Cline, os crimes se tornam ainda mais assustadores quando transformados em ficção, se infiltrando nos recantos mais sombrios da nossa mente.
Os cinco crimes abaixo inspiraram obras literárias recomendadas apenas para quem tem estômago forte.
Dália Negra
Seu nome verdadeiro era Elizabeth Short. Ela tinha apenas 22 anos quando seu corpo foi encontrado mutilado em um terreno baldio de Los Angeles, nos Estados Unidos, em janeiro de 1947.
Ela estava nua, com o tronco cortado na altura da cintura e totalmente sem sangue, o que levou a mulher que encontrou o corpo a pensar inicialmente que se tratava de um manequim de loja. Um jornal sensacionalista logo apelidou a vítima de Dália Negra.
A investigação policial chegou a 150 suspeitos, mas nenhuma prisão foi efetuada e nenhuma das mais de 500 confissões feitas desde então convenceu as autoridades.
O caso, até hoje não resolvido, inspirou inúmeros livros e filmes, incluindo o romance de 1977 de John Gregory Dunne, Confissões Verdadeiras, que parte de um crime semelhante para fazer um retrato da relação de dois irmãos na década de 1940 em Los Angeles.
O mais conhecido, no entanto, é o thriller de 1987 de James Ellroy, Dália Negra. Mas o romance se distancia dos fatos em um aspecto fundamental: o caso é solucionado. E embora a narrativa comece um ano antes de Ellroy nascer, tem uma conotação pessoal para ele. O livro é dedicado a sua mãe, assassinada em Los Angeles em 1958.
‘Arthur e George’
Arthur Conan Doyle recebia muitas correspondências de fãs, incluindo cartas de pessoas que o confundiam com o detetive Sherlock Holmes, personagem fictício criado por ele, e pediam sua ajuda para solucionar crimes.
Na primeira década do século 20, um procurador chamado George Edalji foi libertado da prisão após cumprir três anos de uma sentença de sete anos de trabalhos forçados. Ele foi condenado pela mutilação de animais – como cavalos e gados – e pelo envio de cartas anônimas maldosas a seus próprios pais.
Endalji, que negava as acusações, pediu a ajuda a Doyle para provar sua inocência. O escritor se convenceu de que a cor da pele do procurador – o pai dele era indiano – estava relacionada à condenação, e se empenhou em combater o que hoje seria chamado de racismo institucionalizado na polícia de Staffordshire, condado da Inglaterra.
O caso ganhou as manchetes do noticiário na época e, em 2005, Julian Barnes escreveu o livro Arthur e George, inspirado na história. O romance policial ganhou o Man Booker Prize, prêmio literário britânico, e foi adaptado tanto para o teatro quanto para a TV.
O desaparecimento de Paula Jean Welden
Em primeiro de dezembro de 1946, uma estudante de 18 anos desapareceu enquanto caminhava pela Long Trail em Vermont, nos EUA. Paula Jean Welden era a filha mais velha de um designer conhecido por suas coqueteleiras art déco e cursava o segundo ano no Bennington College.
Era uma tarde fria de domingo quando ela decidiu explorar a trilha, que ficava nas redondezas. Como não conseguiu convencer os amigos a acompanhá-la, foi sozinha – não levou mala tampouco dinheiro extra. Mas nunca voltou para o campus. O xerife do condado foi chamado para investigar o caso, e acabou duramente criticado pela forma como conduziu a investigação.
Diversas teorias vieram à tona – queda seguida por amnésia, suicídio e assassinato – mas nenhum corpo foi encontrado. Entre 1945 e 1950, houve pelo menos quatro outros desaparecimentos inexplicáveis na região. O mistério chamou a atenção da escritora local Shirley Jackson, cujo marido era professor em Bennington.
Seu romance de 1951 Hangsman é inspirado no desaparecimento de Welden, assim como seu conto The Missing Girl (“A Garota Desaparecida”, em tradução livre).
Em 2014, a autora Susan Scarf Merrell publica Shirley oferecendo aos leitores uma reviravolta surpreendente – ela revisita o caso e evoca um novo suspeito: a própria escritora Shirley Jackson.
O Açougueiro de Plainfield
Ele era um assassino, mas também um ladrão de corpos: Edward Theodore Gein, natural de Plainfield, em Wisconsin, nos EUA, foi preso em 1957. Ele morreu encarcerado em uma clínica psiquiátrica em 1984, mas a natureza grotesca de seus crimes foi parar na literatura. Ele confessou ter matado duas mulheres, além de exumar corpos recém-enterrados em cemitérios locais.
Seu plano era criar uma “roupa de mulher” que ele pudesse vestir e “se tornar” assim sua falecida mãe, mas os investigadores encontraram em sua casa uma série de itens de causar náusea – de móveis a roupas feitos de restos humanos.
Apenas dois anos após a prisão de Gein, o escritor Robert Bloch publicou o romance de terror Psicose – que em 1960 se tornou um dos filmes mais aclamados de Alfred Hitchcock. Embora Bloch não tivesse conhecimento dos crimes de Gein quando começou o livro, ele leu a respeito antes de terminar.
Mais recentemente, os crimes de Gein inspiraram o personagem de Buffalo Bill em O Silêncio dos Inocentes, de Thomas Harris.
Harry Powers, serial killer de mulheres
O serial killer Harry Powers vasculhava os anúncios de corações solitários no jornal à procura de vítimas. A intenção dele era atrair mulheres em busca de amor para depois matá-las e ficar com seu dinheiro.
Entre suas vítimas, estavam a viúva Asta Eicher e seus três filhos, de Park Ridge, em Illinois. Após uma troca de correspondências fervorosa, Powers levou Eicher para viajar por alguns dias no fim de junho de 1931. Ele voltou sozinho, dizendo às crianças que as levaria ao encontro da mãe.
Uma segunda mulher também tinha desaparecido quando a polícia começou a investigar o caso em agosto. Na casa de Eicher, cartas de amor levaram os investigadores à comunidade de Quiet Dell, em West Virginia, e a uma trágica cena de crime que incluía pegadas de sangue de uma criança. Eles também encontraram um lote de novas correspondências indicando que Powers estava se preparando para atacar novamente.
Ele foi enforcado em 1932, mas não antes de se tornar um dos primeiros assassinos a causar furor na imprensa. Relíquias mórbidas da cabana onde Power cometeu os assassinatos chegaram a ser vendidas nas ruas. Em 2013, a escritora Jayne Anne Phillips publicou Quiet Dell, sua recriação meticulosamente pesquisada do caso e da cobertura.
Um dos poucos personagens inventados do romance é uma jovem repórter chamada Emily Thornhill, cuja presença sugere, de maneira otimista, o empoderamento feminino. Em um trecho do livro, Thornhill entende por que o serial killer “teve sucesso com essas mulheres na meia-idade, mulheres provavelmente já devastadas por homens ou pelo destino; elas queriam cuidado e proteção”. (Fonte:BBC)