O inventário extrajudicial tem se consolidado como uma alternativa cada vez mais procurada pelas famílias brasileiras para resolver questões sucessórias. No Pará, os números revelam uma tendência impressionante: o crescimento de 100% nos últimos cinco anos, saltando de 566 procedimentos realizados em 2020 para 1.136 em 2024, segundo dados do Colégio Notarial do Brasil – Seção Pará.
Essa expansão reflete um movimento nacional de busca por soluções mais ágeis e econômicas para a partilha de bens após o falecimento de um familiar. Heleine Pereira Michels, tabeliã do Cartório Michels em Marabá, explica que o inventário é tradicionalmente visto como um processo complexo e demorado. “Primeiro, porque envolve questões de transmissão patrimonial. Muitas vezes tem ali vários interesses envolvidos. E tem a questão tributária”, destaca a entrevistada.
A tabeliã ressalta que, além do momento de luto, as famílias precisam lidar com questões burocráticas e financeiras complexas. “Além da pessoa ter aquele momento em que já teve a perda familiar, ela precisa lidar com questões que envolvem tributos, formalizações que precisam para que a pessoa possa utilizar o patrimônio, dar continuidade”, observa Heleine Pereira.
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O cenário atual é resultado de um processo que os especialistas chamam de desjudicialização. Conforme explica a tabeliã, “os cartórios estão passando por um processo que nós chamamos de desjudicialização. Muitas normas vêm aí ao longo dos anos trazendo para os cartórios procedimentos que eram exclusivos do judiciário”.
A Lei 11.441/07 foi o marco inicial dessa transformação, permitindo que inventários fossem realizados em cartório por meio de escritura pública. Desde então, o procedimento tem passado por constantes aprimoramentos. “A lei que permitiu os divórcios e inventários nos cartórios é de 2017. Mas nós tivemos muitos avanços de lá para cá”, destaca Heleine Pereira.
Inicialmente, o inventário extrajudicial tinha limitações significativas. “Quando a lei entrou em vigor, havia um requisito que acabou, de certa forma, dificultando ainda. Os cartórios puderam fazer inventários, divórcios, porém, desde que fosse consensual, mas que não houvessem herdeiros menores ou incapazes e que também não poderia haver testamento”, relembra a entrevistada.
MUDANÇAS RECENTES
As regras mudaram significativamente em julho de 2023, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ampliou as possibilidades do inventário extrajudicial. “O CNJ ampliou essa possibilidade, permitindo que, mesmo nos casos em que os herdeiros, dentre eles, têm um menor, têm um incapaz, ou até mesmo testamento, possam fazer o inventário”, explica Heleine Pereira.
A mudança mais recente veio com a Resolução 571/2024 do CNJ, publicada em agosto de 2024, que trouxe avanços ainda mais significativos. Entre as principais inovações está a possibilidade de realizar inventários extrajudiciais mesmo quando há herdeiros menores e incapazes, desde que haja manifestação favorável do Ministério Público e que o pagamento seja realizado em partes ideais sobre todos os bens deixados pelo falecido.
Para casos com herdeiros menores ou incapazes, a tabeliã esclarece os requisitos: “O quinhão daquele herdeiro incapaz precisa ser integralmente respeitado em todos os bens deixados pelo falecido. Hoje, mesmo tendo inventários com menores, não mais precisa de processo judicial. Os cartórios conseguem resolver. Porém, não pode haver renúncia. Não pode haver transmissão do patrimônio que é de direito do menor”.
AGILIDADE E ECONOMIA
A rapidez é uma das principais vantagens do inventário extrajudicial. Heleine Pereira destaca que “desde 2007 os inventários podem ser feitos extrajudicialmente, por escritura pública, e é muito rápido. Tendo o imposto recolhido ou a documentação das partes, a gente consegue em uma semana fazer uma escritura, que até então levava às vezes mais de 10 anos em um processo judicial”.
O crescimento exponencial observado no cartório de Marabá ilustra essa tendência. “Nós tivemos um salto assim 100% nesse último semestre. O número de inventários que nós fizemos no ano passado todo, já atingimos esse mesmo número até agora, até o meio do ano”, revela a tabeliã.
Uma das mudanças que contribuiu para esse crescimento foi a flexibilização das regras para uso de recursos do espólio. “Uma das hipóteses que o provimento permitiu é que a família pudesse já fazer a venda ou usar um saldo bancário para pagar as despesas do inventário”, explica Heleine Pereira. “A família agora pode lavrar uma escritura onde ela tem acesso ao recurso, por exemplo, saldo bancário, ou podendo alienar um bem, desde que fique vinculado ao pagamento das despesas do inventário”.
REQUISITOS E PROCEDIMENTOS
Para que o inventário possa ser realizado em cartório, alguns requisitos fundamentais devem ser observados. O principal deles é o consenso entre todos os herdeiros. Como exemplifica a entrevistada: “Se 5 estão e 1 não, não adianta esses 5 procurarem o cartório. Um dos requisitos para o cartório é que todos estejam de acordo. Se um não estiver, infelizmente, depende de processo judicial”.
A presença de advogado também é obrigatória. “É um requisito que mesmo para o cartório a lei ainda exige, porque é o advogado que vai assessorar as partes, vai verificar se a partilha está sendo feita de forma correta, se está sendo respeitado o direito de cada um”, esclarece Heleine Pereira.
O procedimento moderno permite inclusive a participação remota. “Hoje a gente faz até pelo E-notariado, faz de forma online, sem a pessoa precisar estar presente no cartório”, destaca a tabeliã, facilitando ainda mais o acesso ao serviço.
O TESTAMENTO
Contrariando a percepção de que o testamento está em desuso, Heleine Pereira revela que “por incrível que pareça, o testamento está com bastante uso. Inclusive, eu mesma frequentemente tenho lavrado testamentos”. A entrevistada explica que o testamento não elimina a necessidade de inventário, mas facilita o processo.
“O testamento não anula o inventário, mas facilita. E principalmente porque dá a segurança de que a vontade do testador será respeitada”, observa. Além disso, o testamento vai além das questões patrimoniais. “Não é só relacionado a patrimônio. O testamento serve também para outras disposições. Por exemplo, quem vai cuidar de um pet, quais os tratamentos de saúde que eventualmente o testador aceita ser submetido”, explica a tabeliã.
O testamento vital, como é chamado tecnicamente, permite que a pessoa manifeste sua vontade sobre tratamentos médicos futuros. “A pessoa descobriu que tem uma doença degenerativa, que vai chegar um determinado momento que ela não vai poder mais manifestar, verbalizar, ou vai ter uma confusão mental. Ela pode, enquanto ainda está lúcida, fazer um testamento dizendo sobre como ela quer ser tratada”, esclarece Heleine Pereira.
LIMITAÇÕES
Embora o testamento permita diversas disposições, há limitações legais importantes. Sobre a possibilidade de deixar herança para animais de estimação, a tabeliã é categórica: “Não é possível. Porque o entendimento jurídico é de que o pet, apesar de ser considerado por muitas famílias como um ente da família, para o direito ele não é sujeito de direito. Ele não pode titularizar direitos e obrigações”.
A explicação técnica é clara: “Adquirindo um bem, você não adquire apenas os bônus. Você tem o imposto, o IPTU, enfim, outras questões. Por esse motivo, você adquire responsabilidades. Mesmo sendo menor, por exemplo, ele é sujeito de direito para fins tributários”.
IMPACTO NACIONAL
Os dados nacionais confirmam a tendência observada no Pará. Segundo informações do setor notarial, o Brasil registrou um crescimento de 40% nos inventários extrajudiciais em 2021 comparado a 2020. Em 2022, foi atingido um número recorde de mais de 213 mil inventários abertos no país, representando um aumento de 40% em relação ao ano anterior.
As estatísticas mais recentes mostram que em 2023 foram realizados 242.853 inventários extrajudiciais no Brasil, representando uma alta de 545% comparado aos anos anteriores à pandemia. Esses números refletem não apenas o crescimento da demanda, mas também a maior conscientização da população sobre as vantagens do procedimento extrajudicial.
A tendência de crescimento é sustentada por fatores estruturais, como explica Larissa Rosso, presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção Pará: “Entre os principais fatores que influenciam esse aumento estão a agilidade do procedimento, a simplicidade da tramitação extrajudicial e a capilaridade dos cartórios de notas, que estão presentes mesmo em localidades onde não há sede de comarca”.
(Reportagem baseada em entrevista concedida por Heleine Pereira Michels, tabeliã do Cartório Michels em Marabá, ao jornalista Patrick Roberto e ao radialista Demerval Moreno, da rádio Correio FM)