Correio de Carajás

Carta de uma artista negra marabaense em visita à Europa

Meus amigas e amigos:

Quando eu estava saindo de Marabá, percebi que entrava em uma nova fase de minha vida, na qual sempre lutei para chegar, não só de conhecimento, graças aos meus esforços e formação no projeto Rios de Encontro, de querer ser uma pessoa bem informada, mas como artista e arte-educadora comunitária afro-indígena, capaz de defender a Amazônia.

De Belém até Bruxelas aconteceram muitas cenas inesperadas. Um motorista de Uber japonês-brasileiro nos levou ao aeroporto e explicou por que vende Bitcom, acreditando que com a venda dessas moedas, não só melhoraria sua renda no Brasil, mas sobreviveria o colapso do dólar americano e a indústria bancária. Tive uma aula inesperada no banco atrás, meu djembe na mão, minha raiz protegida. Mas revelou quanto não sabia sobre o futuro.

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Ao entrar no avião de Belém para Lisboa, senti que estava com uma grande responsabilidade, indo para fora do Brasil, parte de um projeto bem maior, que vem defendendo a vida do povo amazônida durante décadas.

Chegando a Lisboa, claro, o clima mudou, desde a temperatura até o fuso horário. Mas logo que chegamos a Bruxelas, comecei a perceber quanto é complexo viajar no planeta Terra. Nossas malas ficaram em Lisboa por não ter tempo de um avião transferir para o outro, que seguia para Bruxelas, e percebi o quanto eu confiava na autoridade do ‘Primeiro Mundo’.

Monumento público na Praça do Parque Ambiorix que afirma masculinidade sensível

Em Bruxelas, eu fiquei encantada com a quantidade de árvores, pois a Bélgica é um país ‘avançado’ e imaginava que seria assim só em tecnologia. Mas há um cuidado com o ser humano, com uma boa alimentação, com os refugiados e imigrantes, e com parques como direito humano de cada cidadão.

No parque de Praça Ambiorix, em Bruxelas, há uma estátua bastante desafiadora para quem não usa a imaginação para interpretar o significado de arte. Retrata um homem montado no cavalo, seguindo seus movimentos, não em posição militar, mas em atitude de respeito, conhecimento, sensibilidade trabalhadora. Eu achei aquela estátua carinhosa.

Elisa dialoga com jovem jornalista Thomas Kaye do Centro de Jornalismo Infantil

Outras me chamaram atenção. A jovem Bélgica, uma mulher quase caindo, sem equilíbrio formal, balançando entre dança e paixão. Que país se retrata assim?

Uma roda no escritório de Centro de Jornalismo Infantil com três secundaristas da Escola Europeia mudou completamente a percepção de mim mesma! Numa sala cheia de placas caseiras sobre “Greve contra o colapso climático”, Gaia e Miguel explicaram em português como cobrem o movimento escolar “Sextas Pelo Futuro”, traduzindo minhas histórias sobre ativismo cultural para cuidar da Amazônia em inglês e francas pra sua colega, Nora.

Não tiraram seus olhos dos meus, enquanto expliquei a situação grave sobre a ameaça aos nossos direitos humanos e à segurança social e climática no país. Percebi que quase nada chega sobre América Latina e Amazônia à Europa. E esses filhos de deputados europeus e ONGs mundiais, a próxima geração de lideranças, estão famintos pra qualquer informação sobre a Amazônia, qualquer esperança de diálogo e ação internacional. Saí de lá determinada a levar Sextas pelo Futuro à Marabá.

Em seguida, visitamos a Casa de História Europeia, onde há histórias contadas com objetos, panfletos, artes, clips, vídeos, máscaras de gás, cartazes, poesia e citações, para contar a história de lutas entre conquistadores e libertadores, até a Guerra Fria entre duas visões militarizadas sobre o futuro. Nunca imaginava Fascismo e Stalinismo como movimentos tão parecidos, de tanta repressão e genocídio industrializados.

Elisa estuda a escultura lúdica de Jean-Michel Folon no Museu Folon

Percebi a continuidade entre cada história, uma ligada à outra, na busca de ideais. Naquela grande exibição permanente de 6 andares, percebi que ainda tenho de ler muito e me desafiar enquanto futura caloura de história, para adquirir uma consciência histórica.

Uma frase do Primeiro Ministro inglês Winston Churchill, que comandou a luta contra Hitler, me indignou: “temos de virar as costas à violência da guerra e mergulhar na abençoada oblivião da amnésia, olhando ao futuro.”

Elisa dialoga com eco-ativistas da Escola Europeia no escritório de Centro de Jornalismo Infantil próximo ao Parlamento Europeu.

Uma frase oposta de Simone Weil,  sobrevivente de um   campo de concentração, me inspirou: “sem memória, não tem como aprender com nosso passado, para não o repetir no futuro; sem memória, não tenho esperança.”

A cena que mais me atraiu foi a estátua de uma mulher que não segue o padrão que a sociedade exige, inspirando e mostrando a luta do movimento feminista, vestida de uma roupa super colorida, orgulhosa de sua pele negra. Aí me encontrei, nunca desistindo do que desejo agora, não deixando para amanhã o que posso fazer hoje, aproveitando da vida, de olho visionário consciente de tudo que já aconteceu.

Elisa se retrata diante o monumento que valoriza a o movimento da diversidade de memória, língua, cultura e idéias na Casa de História Europeia.

Encerramos nossa visita à Bruxelas com uma visita ao Museu Folon, no meio de um parque de florestas e lagos, uma casa cheia das ilustrações, esculturas e instalações de um grande artista belga que defendia todas as liberdades e o direito de sonhar e criar. Através da arte bem lúdica, engajada, mas poética, pegou símbolos bem conhecidos, mas os colocou em situações ou contextos inesperados. A gente vive o direito de interpretar, se indignar, e se libertar, criando nossa própria consciência crítica e a confiança de transformar. Adorei até aqui!

 

Elisa Dias – de Bruxelas, Bélgica

Projeto Rios de Encontro

04.06.19