Convocamos, para este especial de Ano Novo, alguns membros de nosso time de jornalistas para nos ajudar a olhar o mundo com outros olhos. Que nos contassem de coisas que vimos, ouvimos e sentimos, dos temas espinhosos que estiveram em reportagens e manchetes, mas agora estão sendo mostrados por outro olhar, escritos por outras vivências. Com sua literatura, com o seu modo de contar uma história, com seu jeito de escrever. Cartas com palavras para desatar não só um nó, mas vários atados durante este ano.
Foi a maneira que encontramos para que, nesta nova promessa de ciclo novo, todos nós pudéssemos nos transformar e encontrar uma certa “cura” pela palavra.
No princípio de todas as coisas, a palavra.
Leia mais:O poder das palavras não está nelas mesmas, como dizia Rubem Braga, mas no jeito como as lemos. Pois também desejamos que assim seja feita esta sua leitura. Que esta carta chegue até você para ser lida de corpo inteiro. Mesmo que esteja longe de Marabá.
Carta de Ulisses Pompeu
Encomendaram-me uma carta para o futuro e em cima da mesa estavam as temáticas sugeridas. Não tive dúvida, escolhi a relacionada ao meio ambiente. Mais precisamente, ao rio das minhas memórias afetivas, o castigado Itacaiunas. Foi sobre ele que viajei subindo e descendo dias, semanas a fio com meu pai, até os dez anos, em direção aos castanhais.
Hoje, ele vive cercado pela cidade e recebe esgoto urbano por vários quilômetros até entregar suas águas ao Tocantins. E às margens estão ancoradas milhares de pessoas, a maioria pobre, mas também há as que vivem em casarões luxuosos espreitando a mata ciliar. E é para eles que escrevo esta carta à beira da virada de 2021.
O Itacaiunas é um ser vivo agredido, impiedosamente, de um Ano Novo ao outro. Fumaça, pneu, óleo dos automóveis, sofá, bosta humana, sabão, garrafas plásticas de Coca-Cola, cervejas de todas as marcas, o consumo descartável no rio e em suas margens.
Talvez muitos não percebam, mas há mais pessoas morando às margens do Itacaiunas do que do Tocantins, em Marabá.
Costumo descer o Rio Itacaiunas de caiaque, do Porto do Tacho até a foz, virando no Tocantins e subindo até a Praça São Félix. Faço isso várias vezes no verão e inverno. E o que vejo é de dar dó. O tamanho do nosso descaso com um manancial de águas tão precioso é gigante. E continuamos vivendo como se nada estivesse acontecendo.
O ano de 2021 termina com grandes desafios no campo ambiental para o Brasil e o mundo. Especialistas projetam um 2022 com obstáculos consideráveis, mas também com uma pitada de esperança para o Brasil, diante das eleições e de perspectivas de avanços em assuntos relevantes para a sustentabilidade do planeta.
Em 2021, presenciei muitas castanheiras cortadas na madrugada para driblar a legislação. Como pedalo muito cedo, fiz fotos e guardo as imagens como testemunho do que vi. Tenho mapeadas castanheiras que sobrevivem às margens do Itacaiunas e registrei, inclusive, o ponto de GPS de cada uma.
Querido Itacaiunas, não desista de nós. Há raras pessoas trabalhando para recuperá-lo e que vivem na terceira margem do rio. Uma delas é a promotora do Meio Ambiente, Josélia Leontina de Barros, que juntamente com Mancipor Lopes, lideram um projeto silencioso para criação de uma unidade de conservação e tentar manter preservadas as duas margens do Itacaiunas.
Em 2022, acredito que esse projeto seja aprovado na Câmara e a Prefeitura comece a agir para preservar o que ainda resta e tentar recuperar parte do que já destruímos.
Para o próximo ano, ao Itacaiunas, desejo chuva, se eu pudesse choveria também. Desejo que a cidade e o poder público sejam visitados pela delicadeza de não mais maltratar quem muito nos quer bem e cuida da gente. Mesmo que não percebamos. Desejo cuidado em vez de abandono.
Feliz Ano Novo de menos perversidade contra a Terra e seus seres lambentes.
São os votos para todas as árvores, rios, bichos, florestas, margens e nascentes…
Ano Novo é a gente querendo renascer outro tipo de gente.
Até a próxima!
Ulisses Pompeu