Correio de Carajás

Cacique muda história de aldeia com empreendedorismo

Trabalho liderado pela cacique Kátia Silene virou exemplo de bioeconomia na região, com aposta no empreendedorismo

Quem chega à aldeia Akrãtikatêjê percebe, de cara, grandes diferenças entre as outras 27 que existem hoje na Terra Indígena Mãe Maria, localizada no município de Bom Jesus do Tocantins, a 10 km de Marabá, no sudeste do Pará. Um belo lago com bancos no entorno é o cartão de visita da comunidade. Não há lixo espalhado pelas ruas e as casas são de madeira – diferente das outras duas maiores aldeias da mesma TI, cujas residências foram construídas com tijolos e são mais modernas. É que os Akrãtikatêjê tem outras prioridades.

A Terra Indígena Mãe Maria tem 62.975,85 hectares e abriga três subgrupos da etnia Gavião da Montanha, os Kykatêjê, os Parkatêjê e os Akrãtikatêjê, estes últimos liderados pela cacique Tônkyre Akrãtikatêjê, que atende pelo nome não indígena Kátia Silene Vandenilson. Aos 53 anos de idade, ela foi a primeira mulher a alcançar o posto maior de liderança da comunidade, tendo sido escolhida por seu pai, Hõpryre Ronre Jopikiti Payré, já falecido.

Os Gavião foram expulsos de suas terras, na região de Tucuruí, na década de 1970, pela construção da barragem que hoje serve à hidrelétrica localizada no município. De lá, foram realocados onde vivem atualmente, em Bom Jesus do Tocantins, e passaram a somar outros impactos. Hoje, o território é cortado pela Estrada de Ferro Carajás, da Vale, e por um linhão de energia da Eletronorte, por uma linha de fibra óptica e pela Rodovia BR-222.

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A comparação entre os Akrãtikatêjê liderados por Kátia Silene e as demais aldeias vai além do lago e da organização. Ela conseguiu implantar na comunidade o conceito de empreendedorismo sustentável, mesmo sem conhecer, na época, essas palavras. Reuniu-se com seu pai, Payaré, e decidiram apostar na bioeconomia, com coleta, beneficiamento e venda de seu principal produto, a castanha-do-pará, ou castanha do Brasil, como foi batizada mais recentemente. Depois, agregou-se o plantio de outras culturas, como maracujá e até mesmo a piscicultura, que precisou de suporte técnico. Hoje, têm peixes suficientes para alimentar toda a aldeia e ainda revendem para os kupê (não índios).

 

POVO AKRÃTIKATÊJÊ EM NÚMEROS

62.975 hectares na TI Mãe Maria

3.600 hectares em nova propriedade

10.000 peixes em criatório

85 indígenas na comunidade

20 toneladas de castanha por safra

7 funcionários kupê (não índigenas)

Sonho de Payaré era ver seu povo autônomo e a floresta em pé, como acontece agora a gestão de sua filha Kátia

 

Autonomia sustentável era a urgência de Payaré

Após décadas organizados na TI Mãe Maria, os três subgrupos Gavião cresceram e começaram a sentir as diferenças culturais e de organização entre eles. Assim, em 2002, os Kykatejê decidiram separar-se dos Parkatêjê e migraram para outra área do território.

No ano seguinte, em 2003, Hõpryre Ronre Jopikiti Payré, o cacique Payaré, pai de Kátia, decidiu junto aos filhos fundar uma associação para os Akrãtikatêjê. Em seguida, no ano de 2007, a família optou também por desvincular-se dos Parkatêjê, começando a abrir uma nova aldeia no Km 15 da BR-222, também na TI Mãe Maria, para onde se mudaram em 2009.

Inicialmente, a nova aldeia abrigava 45 pessoas, divididas em 10 famílias. Hoje, já são 85 indígenas em 23 famílias chefiadas por Kátia. “A gente queria autonomia e lá (junto aos Parkatêjê) a gente não produzia porque havia regras, não podia fazia um açude, não podia criar galinha nem montar uma avicultura grande. E a gente tinha planos pro futuro”, relembra Katia.

Conforme a cacique, era desejo de seu pai criar um projeto sustentável para que o povo pudesse viver da terra, ocupando e utilizando o território, valorizando os produtos advindos dele. “Meu pai dava o exemplo da castanha, do cupu, do açaí, da bacaba, da copaíba. A partir dali, aos poucos, trabalhamos e fizemos dinheiro com os produtos que havia na terra, não esquecendo que a gente sonhava criar um açude muito grande pra produzir peixe, e também o mel”, relata.

Ela diz que o pai sentia a urgência de os indígenas deixarem de ser dependentes dos recursos pagos pelos projetos que os impactam, sabendo que esse dinheiro tem prazo de validade. “Quando chegamos aqui, em 2009, a gente falou: ‘agora tem que trabalhar’. Tínhamos que esquecer o dinheiro que a Vale passava para a comunidade. Naquele momento, a gente não tinha ainda recurso nenhum (os valores eram repassados para a comunidade Parkatêjê) e meu pai falou: ‘vamos esquecer e viver a vida porque antes a gente vivia sem esse dinheiro’”.

Os membros do grupo, então, fizeram o exercício de resgatar à memória que, antes de sofrerem impactos socioambientais, viviam da coleta da castanha, do açaí, da pesca e da farinha. “Com a invasão do capitalismo, o povo já estava deixando de ocupar o território trabalhando, e sofremos um impacto muito grande. O pensamento do meu pai era diferente, ele dizia que a gente não podia se acostumar com esse dinheiro porque um dia a Vale poderia ir embora e iríamos precisar trabalhar. ‘Vocês têm de entender que o dinheiro acaba, mas o território não’, ele dizia”.

Sonho de Payaré era ver seu povo autônomo e a floresta em pé, como acontece agora sob a gestão de sua filha Kátia

 

 “O pensamento do meu pai era diferente, ele dizia que a gente não podia se acostumar com esse dinheiro porque um dia a Vale poderia ir embora e iríamos precisar trabalhar. ‘Vocês têm de entender que o dinheiro acaba, mas o território não’, ele dizia”. – Payaré, in memoriam

 
O ciclo da castanha sem fim

 

Na nova área, os Akrãtikatêjê passaram a se dedicar àquilo que os ancestrais já faziam com maestria: a coleta da castanha. Após a retirada da valiosa amêndoa da floresta – cerca de 20 toneladas por safra –, a aldeia vendia para um atravessador que, então, a beneficiava e revendia para o consumidor final com preço bem acima.

Esse processo, repetido à exaustão desde quando Kátia era criança, começou a parecer injusto para ela. “Eu pensava, ‘mas rapaz, nós sofre’. A gente tira a castanha do mato, quando chega o caminhão já tá aqui esperando e ele pagava R$ 40 ou R$ 50 a lata. Nosso povo cortava o ouriço – homem e mulher – e as crianças carregavam. Coloquei na cabeça que a gente precisava acabar com esse ciclo das pessoas se aproveitando da gente”.

Algum tempo depois, a aldeia recebeu a visita de dois professores – Suzane e Francisco – que apresentaram o conceito de cooperativismo à cacique. “Explicaram que a cooperativa tinha que ter vários cooperados e que todo mundo ganhava igual, que tudo que a gente produzisse era igual, em partes iguais e que ninguém ganhava mais que ninguém e que era um incentivo de todo mundo trabalhar, produzir e usar mais o território. Perguntei se era difícil abrir uma cooperativa, disseram que não”.

A comunidade se animou e procurou uma pessoa com conhecimento sobre como abrir cooperativas e que a ajudou nesse sentido. Enquanto isso, a professora Suzane ensinou aos indígenas uma forma de quebrar a amêndoa. “Ela pegou uma lata de castanha, lavou todas, botou no sol, depois na panela de pressão, quebrou numa maquininha e embalou em outra máquina de selar. Ela explicou que uma castanha daquela no mercado era cara e que se eu produzisse daquela maneira ia dobrar o preço, não ia mais vender a R$ 50,00 a lata”, recorda.

A ideia abriu os olhos da cacique que, a partir do Facebook, fez contato com pessoas que tinham uma fábrica para beneficiar castanha, mas que não possuíam a matéria-prima. Após uma negociação, a aldeia comprou os equipamentos necessários.

A produção começou em 2017 e paralisou durante a pandemia por questões técnicas, mas está sendo retomada agora, com investimento em rede de energia mais qualificada (trifásica) para ligar as máquinas caras que foram adquiridas.

“Com luta, aos trancos e barrancos, a gente beneficiou a castanha e começamos a vender. Apareceram muitos clientes e vi que a castanha é mais um projeto sustentável, gigantesco, muito bom. Se tiver a energia regulada e a fábrica a gente vai em frente e não tem mais como a gente passar tempos ruins”, prevê.

Uma alternativa para a instalação de uma rede trifásica virá aos Akrãtikatêjê por meio do Plano Básico Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI) da Vale, para instalação de uma fazenda com placas solares. “Eles (Vale) falaram sobre essa possibilidade, de montar uma fazenda solar, que sirva não só para nosso povo Akrãtikatêjê, mas para toda a TI Mãe Maria, para que a gente seja exemplo para as outras aldeias”, comemora Kátia.

É grande a variedade de peixes presentes no açude construído pela comunidade. Katia se orgulha ao enumerá-los: tucunaré, piabanha, piau, voador, pintado, tambaqui, tambatinga, tilápia… A notícia de fartura de pescado na área logo se espalhou e quando os indígenas se deram conta não paravam mais de vendê-lo, de segunda a segunda e a qualquer hora do dia.

Com isso, surgiu um problema: eles não tinham se organizado para o comércio nessas proporções. Além disso, o entra e sai de pessoas estranhas na terra indígena acendeu um alerta de segurança nas lideranças.

“Não fomos nós que divulgamos, o povo jogou nas redes sociais e começamos a vender de segunda a segunda. A gente não tinha paz, era peixe demais, só num dia a gente faturava entre R$ 20 mil a R$ 25 mil, mas não tínhamos um controle de quanto estávamos gastando na ração, no alevino, porque não foi planejado. Não tínhamos também mais privacidade e segurança”, diz.

A situação forçou a comunidade a parar com a comercialização por um tempo. Por enquanto, está vendendo pescado em ocasiões específicas, como na Sexta-Feira Santa e em outras datas. “Nesse lago imenso temos mais que peixes, temos dinheiro depositado. Quando estamos aperreados vendemos facilmente”, conta Kátia Silene.

A ideia, agora, é organizar a produção e contratar uma empresa terceirizada para fazer a segurança dos portões de acesso à aldeia, o que deve ocorrer ainda este ano.

Represa na entrada da aldeia Akrãtikatêjê abriga milhares de peixes que ajudam na economia das famílias
 Pensando na “geração que vem”

Além do peixe e da castanha, a aldeia Akrãtikatêjê também trabalha outras culturas, como maracujá, milho, mandioca e a criação de frango, produtos comercializados nas feiras de Marabá, a maior cidade da região. O futuro, contudo, já está planejado e objetivos têm sido traçados com uma equipe da Vale para serem implementados junto ao PBA-CI, previsto para depois de junho e que é uma obrigação legal da empresa.

Ao ser questionada pela mineradora se possuía projetos para a aldeia, a cacique não perdeu tempo e citou tudo aquilo que a comunidade sonha para breve. “Falei que queria ampliar os tanques (de peixes), construir uma nova fábrica de castanha porque já beneficiamos o produto; uma casa de mel; um criatório de pacas e um de frango; eu quero um laboratório de inseminação de peixes e mais investimentos na Terra Nova, uma fazenda de 3.600 hectares que ganhamos na Justiça Federal depois de mais de 30 anos de luta; além, claro, da casa de farinha para dar continuidade nos projetos que já tínhamos”.

O turismo ecológico também está na mira. Conforme a liderança, a ideia é utilizar os tanques de peixes para montar um pesque-pague e 32 km de trilhas já foram abertos na floresta para receber os visitantes.

Em um futuro um pouco mais distante, a comunidade pretende reflorestar a área da fazenda com um projeto de açaí, cacau e castanha, além de fazer uma análise para a possibilidade de plantar cacau. Paralelamente, os indígenas discutem uma criação agroecológica de gado. Além disso, há 32 lagos na região e a previsão é a piscicultura crescer.

“São projetos para o futuro, para a geração que vem, para deixar uma segurança. A TI Mãe Maria é uma fonte de riqueza e um meio de sair do comodismo do dinheiro da Vale. Só que o povo tem de acreditar no seu trabalho, precisa cair a ficha que todo mundo tem que trabalhar e produzir para ter autonomia”, observa a cacique.

Para ela, essa visão passa pela educação dos membros mais jovens da comunidade. Assim, relata ter tido a iniciativa de tirar os filhos do comodismo. “Eu estou sempre desafiando os jovens e jogo a responsabilidade para que eles se acostumem no caminho de trabalhar e produzir com sustentabilidade”.

Além disso, diz, trata-se de um caminho pensando também em manter em pé a floresta. “Tudo o que estamos fazendo é engatinhando para um futuro melhor, saudável e de bem viver. Queremos que os jovens se espelhem e valorizem o território, nossa floresta e ela continuar de pé. não precisamos estar explorando, derrubando, tirando madeira, garimpando ouro, porque temos outras riquezas. Somos um povo rico da maneira que nós vivemos”.

Kátia, filhos e netos, tendo ao fundo a represa que ela considera um banco de crédito da futura geração

“A TI Mãe Maria é uma fonte de riqueza e um meio de sair do comodismo do dinheiro da Vale. não precisamos estar explorando, derrubando, tirando madeira, garimpando ouro, porque temos outras riquezas. Somos um povo rico da maneira que nós vivemos”. – Cacique Kátia Silene

 Saída para alcançar investimentos está nas parcerias

Katia sabe que os indígenas teriam dificuldades em avançar economicamente sozinhos, seja pela falta de estrutura, conhecimento técnico ou investimentos. Desta forma, decidiu não contar apenas com as empresas que impactam diretamente a comunidade e buscou parcerias com instituições como Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Pará), Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará) e Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), Fundação Casa da Cultura de Marabá, com apoio do Judiciário e do Ministério Público (Estadual e Federal).

“Não vou deixar nenhuma delas (empresas) em paz, mas procuro juntar forças com os municípios e também com as entidades. Eu não faço mais, mas poderia fazer, porque pra tudo é necessário recurso, dinheiro, e o que ganhamos hoje da Vale não dá para nada, a Vale sabe disso”.

De acordo com ela, a aldeia recebe cerca de R$ 100 mil mensais que são utilizados para todas as necessidades, o cuidado com a aldeia e com a área da fazenda Terra Nova. Esse espaço, inclusive, recebe atualmente a maior parte do investimento para que, futuramente, haja retorno para a comunidade. “Nosso dinheiro está lá. Às vezes, os meninos perguntam onde tá o nosso dinheiro e eu digo ‘lá na fazenda’. Perguntam do resto. ‘Embaixo da água’. E o resto? ‘Na trilha’. E o outro? ‘Tá na castanha’”, conclui.

Juíza, promotora, presidente da FCCM e representante do Ibama: parceiros do projeto sustentável liderado por Kátia

(Ulisses Pompeu)