Correio de Carajás

Cabelo crespo: autoaceitação, representatividade e afetividade

Caroline e Ulda relatam suas experiências sobre preconceito, transição capilar e autorreconhecimento

Diariamente as mulheres enfrentam grandes batalhas, que muitas vezes aos olhos dos homens – e pelo julgamento de outras mulheres – podem ser vistas como algo comum e até mesmo sem importância. Uma dessas batalhas são os padrões de beleza impostos pela sociedade.

A mulher, para ser considerada “bonita”, precisa estar dentro do padrão de magreza, cabelos lisos, bem vestida, pele clara, entre tantos outros adjetivos.

E, em meio a essa ditadura, as mulheres negras são as que mais sofrem com a descaracterização da própria identidade porque desde crianças ouvem frases como: “vai arrumar esse cabelo”, “corta esse fuá”, “tem que deixar o cabelo preso” ou “bora passar um creme para o cabelo sentar”, enraizando o auto preconceito, fazendo com que uma grande parte das meninas recorra aos alisamentos para poder ‘fazer parte’ de um determino grupo social.

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O Correio de Carajás conversou com Caroline de Paula, 29 anos, artesã, afro empreendedora e cantora, e com a cantora Ulda Wambergue, 35 anos, para falar sobre infância, preconceito, autoaceitação, representatividade e afetividade com o cabelo afro.

 

“O primeiro passo é a não-aceitação”

Filha de Marabá, Caroline de Paula, 29 anos, relembra que quando criança, a Associação de Moradores da Folha 29, bairro que reside até hoje, oferecia diversos cursos técnicos e dentre eles o curso de cabeleireiro. “Fiz esse curso quando eu tinha uns 11, 12 anos”, fala.

E, até os 14 anos, ela conta que sempre que acompanhava a mãe no salão de beleza se encantava com o trabalho das mulheres. Carol relembra que queria lavar o cabelo das clientes. “Eu ficava atazanando a vida das cabeleireiras. Não demorou muito arranjei um emprego como ajudante de salão. Comecei a me especializar e aprender mais”.

Em 2012, após um acidente, meses após ter tido o primeiro filho, Carol acabou tendo que tomar muitos remédios e o cabelo, que já havia caído no período da gravidez, caiu ainda mais por conta da medicação. “Não consegui cuidar do meu cabelo e manter o alisamento. Fiquei muito frustrada. Não foi de uma forma afetiva e amorosa, mas tive que cortar o meu cabelo. Raspei na máquina”, relembra.

Para Carol Afrosil, homens e mulheres não conseguem se reconhecer – Foto: Evangelista Rocha

Meses depois se mudou para Resende, no Rio de Janeiro. Com a expectativa de ver mulheres, principalmente as negras, usando o cabelo natural, Carol se decepcionou. “O alisamento ainda tem uma força. As mulheres negras precisam se encaixar num padrão, né?”, lamenta, admitindo que naquele período decidiu que não iria voltar a alisar o cabelo e manteria ele natural.

Carol admite que teve cabelo alisado desde os 5 anos de idade, depois que ela mesma pediu para a mãe. Relembra que era véspera da formatura do ABC e queria ir de cabelo liso, vestido comprido branco e meia calça branca. “Tinha ali uma nuance racial da qual eu sofria sendo eu a única menina negra da escola. Minha mãe começou a passar um produto no meu cabelo. Ela, como mulher branca não sabia lidar muito com isso, mas sempre fez questão de exaltar a minha beleza”.

Surgimento do Afrosil

Morando no Rio de Janeiro e vendo tantas mulheres crespas ainda reféns do alisamento, despertou em Carol a vontade de falar sobre o assunto com outras pessoas. Decidiu então realizar um encontro para conhecer as cacheadas da região, falar sobre cremes, penteados e outros assuntos.

“De um evento pequeno surgiu a Afrosil, que é o encontro de afro e Brasil, que era pra falar com as crespas e cacheadas. E aí foi crescendo, passamos a fazer esse encontro a cada seis meses, comecei a trabalhar com os assessórios que eu já produzia como: turbantes, brincos, e também com os penteados”.

Quando retornou pra Marabá em meados de 2018 decidiu que iria continuar trabalhando com os acessórios afros. O receio veio, claro, mas Carol acreditou na ideia e manteve o nome Afrosil.

“Voltei a trabalhar com artesanato e as pessoas sempre perguntavam quem cuidava do meu cabelo. E nesse período, consegui abrir uma loja pra vender meus artesanatos, mas o cabelo sempre me chamava. Comprei uma cadeira e um espelho que era só pra fazer um penteado e aí as pessoas pediam ajuda de como cuidar do cabelo, penteados, e veio a pandemia. Com tudo fechado na cidade, comecei a atender em casa e quando percebi uma parte da sala da minha casa virou salão, depois a sala toda, depois mais um quarto, e aí a casa toda virou um salão, e eu continuo nesse movimento de micro empreender e criar estratégias pra trazer esse público da região”, diz Carol Afrosil, como ficou conhecida na cidade.

Valorização do cabelo afro

Seja para quem está no processo de transição capilar ou quem está auxiliando, Carol afirma que é um processo extremamente doloroso, pois trabalhar com a estética afro é um processo de auto reconhecimento e que precisa ser feito de forma amorosa.

“Esse reconhecimento foi apagado desde quando a pessoa era muito criança. Homens e mulheres não conseguem se reconhecer. Os meninos são ensinados a raspar o cabelo desde cedo, porque, se não, são apontados como marginais, que não querem nada com a vida. E, quando eu passei a trabalhar com isso, me enxergava nas pessoas. Sabia o passo a passo, e o primeiro momento é a não-aceitação”, avalia Carol.

Em relação às mulheres, outro ponto importante que Carol destaca são as mudanças hormonais. Para ela, grande parte do público que atende começou a alisar o cabelo ainda criança e que o cabelo não é o mesmo.

“A primeira coisa que tenho que saber é ‘que mulher ela quer encontrar ao se olhar no espelho?’ É uma construção da sua nova identidade. Por isso falo de liberdade e empoderamento. Liberdade é você usar o cabelo como você quiser. Não é um problema a mulher alisar o cabelo, desde que ela saiba quem ela é e que o cabelo está liso sem ter sido feito de uma maneira imposta. Está liso porque gosta e acha legal. Liberdade é você ser quem você quiser”, finaliza.

 

“O cabelo não define quem eu sou”, diz cantora negra

A cantora Ulda Wambergue, 35 anos, lida com o preconceito desde a infância. O primeiro momento aconteceu de certa forma, mascarado, quando foi morar com a família na França. Ela relembra que assim que chegou no país percebeu que era totalmente ‘fora dos padrões’: negra e do cabelo crespo. “Todas as outras crianças da escola eram brancas, dos cabelos lisos e olhos claros. Fiquei com medo de não dar certo. mas todos queriam fica perto de mim e pegando no meu cabelo. Na França eu era a sensação da escola, me sentia uma estrela independente se fosse curiosidade ou preconceito deles. Mas era algo que me fazia de destaque ali. Ao invés de ser excluída, queriam estar o tempo todo comigo porque eu era diferente”, relembra.

“O meu cabelo me identifica como uma mulher que está aprendendo a se reconhecer”, diz Ulda – Foto: Evangelista Rocha

Preconceito

De volta ao Brasil, quando começou na carreira musical, uma das pessoas que a contratou pela primeira vez pediu para que ela “desse um jeito no cabelo”. A cantora relembra que respondeu a empresária informando que o que estava jogo era um show e não sua estética. “Cortamos a parceria antes mesmo dela começar”, diz.

Contudo, foi a partir dessa situação lamentável que Ulda admite ter parado de usar o cabelo natural. “Saí de lá e fui fazer uma selagem”.

Ela relembra que percebeu que não seria aceita como mulher gorda e de cabelo black.

Questionada se essa teria sido a primeira vez que o cabelo passou por um processo de alisamento, ela conta que foi a primeira após uma pressão social. Porém, quando retornou ao Brasil aos 9 anos de idade, passou pela gordofobia na escola.

“Ninguém me pediu pra alisar cabelo. Eu que sentia que seria mais aceita ou passaria despercebida por ser gorda e ter o cabelo liso. Pensava ‘ninguém vai falar que meu cabelo é fuá’. Teve esse processo por isso comecei a mexer no cabelo aos 9 anos. Hoje, deixo claro que ninguém vai se meter nas escolhas da minha estética. Mas isso foi uma construção”.

Aos 17 anos, morando sozinha, a cantora afirma que fez sua primeira selagem. Convivendo com meninas de cabelos lisos, ela acreditava que se não tivesse também, iria “continuar sendo a única gorda do rolê” e ainda de cabelo black. “Era um liso bagunçado”, fala sorrindo.

A volta dos cachos

Assim que decidiu largar as tranças – usadas no período de transição capilar – Ulda enviou uma foto ao pai através de um aplicativo de mensagens e na mesma hora recebeu um “a Ulda brasileira está de volta, estava só a francesa”.

Ao Correio de Carajás, ela conta que todas as vezes que ia fazer manutenção nas tranças comentava com o pai sobre a ida ao salão e ele ficava na expectativa de ver o cabelo natural da filha. Passado pouco mais de um ano, ela decidiu ‘aceitar os cachos’.

“O cabelo não define quem eu sou. O cabelo é a minha estética. Quem eu sou é como eu me sinto e como me apresento para as pessoas como uma pessoa pública. Eu poderia estar com o cabelo no pé, de selagem e ter a mesma personalidade. Então, não considero que o meu cabelo identifica quem eu sou. Mas considero que aceitar o meu cabelo me identifica como uma mulher que está aprendendo a se reconhecer dentro de uma estética que sempre foi dela. Não é que eu seja a Ulda porque estou de cabelo cacheado. Mas se eu estou de cabelo cacheado é porque sou a Ulda”, enfatiza.

Para ela, os cachos são como se ela tivesse soltado amarras sociais que a prendiam. “Aceitar meu cabelo é me aceitar da maneira que sou hoje”, finaliza.

(Ana Mangas)