Correio de Carajás

Benedita

Quando nasci, me foram apresentadas duas mães: quem me pariu e quem ajudou a me embalar. E quando digo ajudar, confesso estar sendo leviana, afinal, se ela tivesse somente auxiliado na epopeica missão de me criar, provavelmente não seria conteúdo dessa crônica. E olha que Benedita é conteúdo para uma bíblia inteira.

Benedita, com suas rugas e cabelos brancos como a neve, foi o que se tornou mais íntimo da minha própria existência, a ponto de misturar em mim o ela e o ela em mim. Cresci segurando suas mãos, não apenas porque ela guiava meus passos inseguros na calçada, mas porque em cada um desses passos ela ia deixando um pouco de si em mim. Passados vinte e cinco anos, ao invés de soltar minha mão, seguramos juntas o tempo, que vai moldando nossos encontros e despedidas, um dia após o outro, como ondas que tocam e se afastam da areia.

Em cada olhar que ela lança para as coisas comuns, como quem saboreia o mesmo café coado exatamente igual todos os dias, há uma espécie de resistência em aceitar que as forças lhe falham. Essa recusa silenciosa de ceder ao cansaço ou às limitações me mostra algo que eu mesma ainda não compreendo bem. Talvez seja uma forma de dizer que o tempo pode carregar o corpo, mas o espírito, ah, esse permanece um mistério, com seu próprio ritmo. E assim, Benedita me ensina, mesmo sem saber, a delicadeza do envelhecer: a resistência de ser, mesmo quando o corpo se vai tornando sombra do que já foi.

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Sei o que dizem os livros e os médicos, que o envelhecer não é apenas físico, mas toca a alma, impõe um peso ao coração, muda a relação com o tempo e a própria história. Mas observar Benedita é entender que o envelhecimento não é apenas um processo biológico; é uma narrativa, uma espécie de poema escrito entre a carne e o espírito, que vai surgindo nas linhas do rosto e nas pausas entre as palavras. Envelhecer é o próprio existir, na sua forma mais pura, sem pressa, sem medo. Só quem ama é capaz de ver assim, de perceber os rastros da juventude que ainda habitam o olhar, o riso, mesmo quando as lembranças começam a se esvair.

Hoje, ela me ensina como resistir à perda da memória e ao som que foge aos ouvidos. Não se trata só de aceitar, mas de negociar com o corpo, como se fosse possível manter um pacto de gentileza com o tempo. E na costura que hoje lhe escapa dos dedos, há uma espécie de lição não dita: que viver, na verdade, é saber soltar, saber aceitar que o tempo leva pedaços de nós. Mas enquanto isso, ele vai deixando outros pedaços novos, tão preciosos quanto os que levou.

E eu? Eu observo e aprendo. Sei que, um dia, talvez, possa vir a ter os cabelos brancos como os dela, que também serei lenta, esquecida. Mas existe algo de eterno, de sagrado no amor que cresce ao ver o outro envelhecer. Esse vínculo torna a própria vida uma dança com o tempo, um ato de entrega. E é assim, ao seu lado, que Benedita me faz refletir sobre as coisas mais simples e mais complexas, sobre ser jovem e um dia não mais ser. Ela me oferece o maior de todos os espelhos: aquele que reflete o futuro que carrego em mim e o passado que um dia se despedirá de mim.

Há somente uma coisa que Benedita não me ensinou e nem poderia: viver em um mundo onde não exista Benedita. Viver sem olhar suas mãos já enrugadas pelo tempo, viver sem a ter me chamando de “neguinha” ou me abençoando em todos os amanheceres. É que, de todos os ensinamentos de Benedita, somente um foi egoísta: o de não me deixar saber se um dia existirá Thays sem Benedita.

 

 

Thays Araujo é jornalista e dá primeiros passos na arte de produzir crônica

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.