A partir deste sábado (1º), a Austrália se torna o primeiro país do mundo a legalizar a prescrição clínica de MDMA, mais conhecido como ecstasy, e psilocibina – o principal ingrediente psicoativo dos cogumelos alucinógenos – para determinados transtornos mentais.
Psiquiatras autorizados poderão prescrever MDMA para o tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) e psilocibina para depressão resistente ao tratamento, de acordo com uma resolução de fevereiro. Ambas as drogas são ilegais na Austrália.
“A psilocibina e o MDMA são relativamente seguros quando usados em um ambiente medicamente controlado sob a supervisão de profissionais de saúde adequadamente treinados e nas dosagens que foram estudadas em ensaios clínicos”, disse a Administração de Produtos Terapêuticos da Austrália (TGA, na sigla em inglês) ao anunciar a mudança.
Leia mais:No entanto, alguns psiquiatras e pesquisadores estão preocupados de que a mudança possa ser prematura, uma vez que os medicamentos em questão ainda estão sendo testados em ensaios clínicos e não foram formalmente aprovados para o tratamento de quaisquer transtornos de saúde mental pela Food and Drug Administration (FDA), órgão de saúde norte-americano, para uso clínico.
“É cedo em comparação com o processo usual de desenvolvimento e lançamento de novos tratamentos”, disse a psiquiatra clínica Dra. Colleen Loo, professora de psiquiatria da Universidade de New South Wales e do Black Dog Institute em Sydney.
“A questão principal é que o público entenda isso, e não pense que a TGA disponibilizando esses medicamentos significa que o nível de evidência de eficácia e segurança é comparável ao normalmente exigido para novos tratamentos, antes de serem aprovados para uso clínico”, disse Loo, que fazia parte de um comitê diretor do Royal Australian and New Zealand College of Psychiatrists (RANZCP), organização que representa a especialidade médica da psiquiatria na Austrália e na Nova Zelândia, responsável pela elaboração das orientações sobre como o tratamento deve ser abordado e monitorado.
“Feito com responsabilidade, por exemplo, observando as orientações do RANZCP, pode significar que algumas pessoas tenham acesso a um tratamento útil. Feito sem a devida cautela, supervisão e monitoramento, inclusive por parte das autoridades reguladoras, pode significar mais mal do que bem”, disse Colleen por e-mail.
A Austrália pode ser o primeiro país a regulamentar o uso terapêutico de MDMA e psilocibina, mas não é o único a inaugurar uma nova era da medicina psicodélica.
A Autoridade de Saúde do estado norte-americano do Oregon anunciou em maio que licenciou o primeiro prestador de serviços de psilocibina no estado após se tornar, em 2020, o primeiro estado dos EUA a legalizar a substância para uso pessoal para maiores de 21 anos.
Em outubro de 2022, Alberta se tornou a primeira província do Canadá a regulamentar o uso de drogas psicodélicas.
A promessa dos psicodélicos
Os defensores esperam que drogas psicodélicas como MDMA, psilocibina e cetamina possam tratar uma ampla gama de condições de saúde mental, incluindo vícios, ansiedade e anorexia relacionadas ao câncer, bem como TEPT e depressão resistente ao tratamento.
“Os pacientes estão desesperados por algo novo. [Essas drogas] representam uma nova maneira de tratar as coisas ou uma espécie de mudança de paradigma na psiquiatria, na verdade”, disse Celia Morgan, professora de psicofarmacologia da Universidade de Exeter, no Reino Unido.
Sua pesquisa se concentra no potencial do MDMA e da droga psicodélica ketamina para tratar pessoas com dependência de álcool.
A cetamina é usada como anestésico em ambientes hospitalares e, mais recentemente, pesquisas descobriram que ela melhora os sintomas de depressão resistente ao tratamento, conforme relatado anteriormente pela CNN.
O mecanismo neurobiológico exato pelo qual as drogas psicodélicas melhoram certas condições de saúde mental não é totalmente compreendido, mas acredita-se que afete a plasticidade do cérebro e o prepare para novos aprendizados, explicou Morgan.
A pesquisa que mais avançou é o teste clínico da eficácia do MDMA como droga terapêutica em participantes de estudos humanos com transtorno de estresse pós-traumático grave.
As descobertas de 2021 de um estudo de fase 3 mostraram que o MDMA pode ser um “tratamento inovador em potencial” para o transtorno.
Para psilocibina e formas de depressão resistentes ao tratamento, um estudo de 2022 publicado no The New England Journal of Medicine (NEJM) que envolveu 233 participantes descobriu que uma dose de 25 miligramas de uma versão sintética da psilocibina reduziu os escores de depressão durante um período de três semanas.
No entanto, os pesquisadores descobriram que os efeitos desapareceram após cerca de três meses.
James Rucker, professor clínico sênior de psicofarmacologia no Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência do King’s College de Londres e coautor do estudo do NEJM, disse que a Austrália estava “queimando a largada”.
“Por que você está abrindo uma exceção para essas drogas, especialmente quando sabemos que elas têm efeitos psicoativos poderosos?” ele perguntou. “Você não está abrindo exceção para nenhuma outra droga.”
“Certamente houve casos em que transformou a vida das pessoas. Mas é imprevisível.”
Morgan concordou, dizendo que parte do entusiasmo em torno dos psicodélicos era contraproducente e os médicos precisavam ter cuidado para não exagerar nos benefícios dos psicodélicos.
“Eles não funcionam para todos, e algumas pessoas podem encontrar algum benefício, mas depois recaem”, disse Morgan.
“Acho que isso cria expectativas muito altas para as pessoas que estão lutando com problemas de saúde mental, onde a desesperança, novos sentimentos de fracasso, então isso pode ser apenas outra coisa em que eles falharam. Portanto, realmente temos que ter cuidado ao falar sobre eles como médicos.”
Rucker declarou temer que o entusiasmo em torno do sucesso dos primeiros testes pudesse alimentar os resultados dos testes posteriores em um “ciclo de feedback positivo de hype”.
Como funcionam os psicodélicos?
Loo, a psiquiatra clínica da Universidade de New South Wales, enfatizou que a eficácia das drogas psicodélicas não se deve apenas aos efeitos neurobiológicos das drogas, mas ao contexto em que as drogas foram administradas.
Nos ensaios, os participantes normalmente trabalham em estreita colaboração com um psiquiatra antes, durante e depois de tomar MDMA ou psilocibina, e acredita-se que são esses “efeitos sinérgicos complexos” da combinação de psicoterapia com psicodélicos que são importantes para um resultado benéfico.
“A natureza exata dessa relação sinérgica não é conhecida”, disse ela. “O cérebro é um órgão tão complexo, e fatores como personalidade, circunstâncias sociais, predisposição genética e biológica aumentam a complexidade de por que as pessoas têm problemas de saúde mental.”
De acordo com os novos regulamentos do governo na Austrália, o tratamento psicodélico ainda será mantido sob controle. Os medicamentos devem ser prescritos por um psiquiatra que primeiro obteve a aprovação de um comitê de ética em pesquisa e, em seguida, obteve a aprovação formal como um “prescritor autorizado” da TGA, observou Loo.
Contudo, ela disse que os novos regulamentos deixaram “muito a ser decidido sobre como as pessoas são avaliadas ou rastreadas para o tratamento, como o tratamento é administrado e monitorado”.
Rucker disse temer que as clínicas com fins lucrativos possam tentar lucrar, potencialmente colocando em risco as pessoas com problemas de saúde mental.
Ele destacou que as drogas psicodélicas resultaram em “poderosos estados alterados de consciência que podem ser intensamente terapêuticos, mas também intensamente desestabilizadores”.
“Se você tem um contexto regulado, segurado e seguro e um bom relacionamento psicoterapêutico, e sim, há potencial para grandes benefícios aí.”
No entanto, Rucker enfatizou que as drogas psicodélicas não eram “uma mudança química para fazer tudo parecer bem. É tentador pensar que isso pode ser uma solução rápida para seus problemas, mas é exatamente o contrário”.
(Fonte: CNN Brasil)