Quando a musicista Lua Bernardo, de 35 anos, foi chamada para participar como modelo em um curso de maquiagem em 2014, descobriu algo que desconhecia até então: o fato de que é uma mulher negra.
“A companheira de um amigo estava fazendo um curso de maquiagem e queria fazer um estilo afro em uma noiva negra e me convidou para ser modelo. Foi quando a minha ficha começou a cair (sobre ser uma mulher negra)”, comenta Lua à BBC News Brasil.
Filha de mãe branca e pai negro, que não acompanhou o crescimento dela, Lua afirma que passou mais de duas décadas sem entender que é negra. “Só descobri com quase 27 anos”, diz à BBC News Brasil.
Leia mais:Descobertas como a de Lua não são incomuns entre os brasileiros. Em locais como as redes sociais há diversos relatos de pessoas que contam sobre o momento em que se descobriram negras.
Em um livro intitulado Quando me descobri negra, a escritora Bianca Santana narra a sua descoberta. “Tenho 30 anos, mas sou negra há dez. Antes era morena”, inicia ela, ao contar experiências que viveu ou ouviu de outras mulheres e homens sobre a forma como se descobriram negros.
Mais recentemente, o assunto se tornou notícia após uma participante do reality show Big Brother Brasil se descobrir negra durante a atração exibida pela Rede Globo.
Na competição, a participante Paula Freitas disse que soube disso durante o confinamento. “Juro, descobri que era preta aqui. Foi naquela hora que ele disse ‘vem os pretos tirar foto'”, disse.
Durante o diálogo no programa, o médico Fred Nicácio, o responsável por chamar Paula para a foto, comentou que “vários pretos descobrem que são pretos na faculdade”.
Essas diferentes maneiras de descobrir sobre o tema, aponta a pesquisadora Daniela Gomes, fazem parte da história de muitas pessoas negras.
“Uma pessoa branca não tem dúvidas do que ela é, ela se olha no espelho e se reconhece. Agora uma pessoa negra, que teve a sua negritude negada ou questionada, se olha no espelho e não se vê como negra, porque o negro é outro”, afirma Daniela, que é professora em estudos da Diáspora Africana na Universidade Estadual da Califórnia em San Diego (SDSU).
Após a descoberta
É a partir dessa descoberta que muitas coisas vividas no passado começam a fazer sentido para essas pessoas, aponta Daniela.
“Não é algo como acordei de manhã e sou preta. É que você passa a entender que agressões que sofreu, pequenas ou grandes, ocorreram por causa do racismo, entende oportunidades que perdeu e até então isso não tinha nome (até se reconhecer como uma pessoa negra). A partir dessa tomada de consciência, isso passa a ter nome: racismo”, diz a pesquisadora.
No caso de Lua, essa descoberta a levou a recordar situações do passado que hoje avalia como episódios de racismo.
“Entendi que alguns comentários, como o de que o meu cabelo estava muito crespo e precisava de chapinha, já apontavam para isso, mas nunca relacionei isso com questão de raça por estar nesse contexto familiar bem branco”, diz a musicista.
“Mesmo com meu cabelo e alguns traços negróides, eu nunca havia parado pra pensar nisso. O contexto familiar (composto por pessoas brancas) nunca me fez pensar sobre isso”, acrescenta.
A descoberta de que é uma mulher negra foi fundamental para a vida, avalia Lua.
“Essa descoberta me impactou num lugar de pertencimento, de entender esse lugar de estar em uma família branca.”
“Passei a me sentir pertencente a uma comunidade negra, com pessoas negras. Tanto que hoje naturalmente a maioria dos meus amigos são pessoas pretas, porque fui buscando essa ligação”, diz Lua, que considera que o ingresso na universidade também a ajudou a entender melhor a importância da luta contra o racismo.
‘Processo doloroso, mas necessário’
Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2021, a população negra soma 56,1% no Brasil. Isso inclui aquelas pessoas que se “autodeclaram pretas e pardas”, segundo definição do Estatuto da Igualdade Racial em 2010.
De acordo com essa pesquisa de 2021, os pardos somam cerca de 100 milhões de brasileiros. Eles respondem por 47% da população brasileira, à frente de brancos (43%), pretos (9,1%) e da soma entre indígenas e amarelos (0,9%).
A professora Daniela Gomes afirma que o Brasil tem uma mentalidade racial construída para clarear as pessoas, “um processo de embranquecimento da população construído para negar negritude e racismo”.
“Lá atrás, esse embranquecimento da população, construía uma mentalidade de nação onde por um lado quanto mais escuro mais é afetado pelo racismo e por outro lado o racismo não existe na cabeça da grande maioria da população”, pontua.
“No país há um inconsciente coletivo onde a mentalidade racial aponta para fazer com que as pessoas entendam que ser negro não é legal. Por isso, podem tentar de alguma forma não ser negro. Isso vai desde não se entender com pessoas negras até ao ponto de não se envolver com elas”, declara Daniela.
A estudiosa afirma que o processo de tomada de consciência racial é fundamental.
“Isso envolve muitas coisas, a partir de um espaço social. É parte de uma retomada de consciência que pode envolver situações como acessar outros espaços, fazer parte de grupos ativistas ou se ver isolado em um ambiente predominantemente branco no qual você é o único negro”, diz.
Ela frisa que essa descoberta pode ser um processo doloroso, que demanda apoio emocional e que pode precisar de acolhimento por parte da família e até de movimentos ativistas.
“Isso demanda estudar sobre si e o povo. Ninguém quer ficar do lado da história que perdeu. No caso, a população negra foi vitimizada pela escravidão e sofre racismo desde que esse país existe. Então quem quer se identificar com a negritude? Ninguém quer estar do lado que está sendo destruído e massacrado. Por isso, é um processo doloroso, mas necessário”, afirma.