O termômetro marcava 13ºC quando Maria Elisabete da Silva, de 31 anos, acordou na madrugada com o choro de seus dois filhos, que se queixavam de sede. Ela abriu uma fresta na barraca de camping onde mora e notou, preocupada, que os baldes de doce de leite e maionese que a família usa como caixa d’água estavam vazios. Na barraca de Elisabete, embaixo do viaduto Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, vivem 11 pessoas; sua irmã, Soraia, de 30 anos, é mãe de outras sete crianças.
Em entrevista à BBC News Brasil, as duas mulheres contaram que, no mês passado, já precisaram racionar por quatro dias uma garrafa de 2 litros de água para toda a família. A água foi usada prioritariamente para escovar os dentes e diluir o leite em pó para amamentar um bebê de apenas 25 dias de vida, que também mora na barraca.
Na ocasião, depois de quatro dias vendo os filhos sem banho por falta d’água no último mês, as duas mães tomaram uma decisão que elas mesmas definem como “desesperadora”. “Pegamos a lona da barraca e amarramos dos dois lados para aparar a água da chuva. Depois, a gente despejou num balde e deu banho nas crianças. Só não precisamos beber essa água graças ao menino do mercadinho ao lado que nos ajudou. Mas banho já precisou. E não foi só uma nem duas vezes”, afirma Silva.
Durante uma semana, a reportagem conversou com dezenas de moradores de rua para saber o que eles fazem para beber, armazenar e transportar água em São Paulo, metrópole que tem enfrentado longos períodos de seca e teve sua maior crise hídrica há dois anos. A maior parte relata ficar sem água quase que diariamente e diz que o problema se agrava à noite, durante feriados e finais de semana – quando a maior parte do comércio fecha. A população de rua também reclama da falta de torneiras e bebedouros públicos.
“O que custa para um governo colocar bebedouros nesta cidade? Existe um descaso total do poder público. Estou há 30 anos neste trabalho e já vi muita mudança de política de governo, mas ação nessa direção a gente não vê. Você não pode colocar uma torneira e um bebedouro na rua? Quebra sim, mas a cidade tem que ter manutenção e zeladoria. A gente não pode ver uma pessoa morrer de sede ou doente porque não consegue o básico, que é a água”, disse Ferreira.
Ele acrescenta que, muitas vezes, o morador de rua diz que precisa mais de água que comida. “Antes, a gente distribuía suco, mas fizemos uma pesquisa e eles disseram que esse não era o ideal. Falaram assim: ‘Kaká, suco não mata a sede. O que mata a sede é água'”.
O professor de direito constitucional na PUC-SP e de direito econômico na USP André Ramos afirma que a Constituição não determina de quem é a obrigação de fornecer água à população. O docente afirma ainda que o Código de Águas, da União, afirma apenas que ela é um bem comum, mas sem atribuir a responsabilidade de seu fornecimento.
“Devemos compreender como dimensão da dignidade, um direito básico. E, assim, de responsabilidade de todos os entes federativos. O problema é o poder público assumir voluntariamente a responsabilidade pela execução desse dever. Mesmo com leis e Constituição taxativas, sabemos que os direitos prestacionais sofrem resistência do Estado”, afirma.
Quanto mais limpo, mais fácil
Ao lado de um viaduto no bairro de Artur Alvim, na periferia da zona leste de São Paulo, o sapateiro Santiago Cardoso, dorme na calçada ao lado de suas roupas, sem nenhuma cobertura. “Eu tenho 41 anos e acho que não chego aos 42.”
Soropositivo, usuário de crack e quase cego do olho esquerdo, ele conta que caminha com dificuldade por cerca de 15 minutos para tomar um banho “congelante” numa bica no bairro vizinho de Itaquera. Mas conta que a água “é gelada demais” e que a fraqueza que sente no corpo o levou a ficar um dia e meio sem ter o que beber.
BBC NEWS BRASIL Soropositivo e quase cego de um olho, Santiago diz que sente saudade de quando tomava banho quente e tomava água gelada em sua casa
“Eu fiquei sem água porque eu não conseguia me levantar. Eu estou debilitado por causa do vírus HIV e tem vezes que fico três dias deitado”, afirmou.
Ele afirma também que é tratado com preconceito sempre que pede água, até mesmo em bares de conhecidos.
“Eles (donos) falam assim: ‘pega um copo descartável para ele’. A gente não é bicho. (Quando ouço isso), eu penso que sou um lixo. Peço para encher garrafa a de água e muitas vezes olham torto e não enchem. Dizem que está em falta”, conta, chorando à reportagem.
FELIX LIMA/ BBC NEWS BRASIL Professora que mora nas ruas há três meses diz que quanto melhor a aparência, mais fácil é conseguir água
Formada em letras, a professora Eliana Toscano de Araújo mora há três meses na rua com o companheiro embaixo de um viaduto na avenida Santos Dumont, na região central da capital. Ela diz que a facilidade para conseguir água é proporcional à aparência da roupa que a pessoa está vestindo.
“Se você estiver muito feio, eles negam na hora. Negam até o acesso ao estabelecimento”, conta Araújo.
Ela diz também que tem mais facilidade para conseguir água que o marido, principalmente quando ele está sem camiseta, com suas tatuagens à mostra.
Mas ainda assim Araújo lembra que costuma ficar tanto tempo desidratada que chega a sonhar que está matando a sede. “Essa noite, eu sonhei que estava bebendo água na mão. Ah, que delícia!”. (Fonte: BBC Brasil)