Correio de Carajás

A literatura deve ser moralizante? (Parte 1)

A Literatura tem a função moralizante? Ela foi criada para nos ensinar alguma coisa? Respondo: a Literatura não deve ser moralizante, mas ela é um meio de reflexão moral. Ela provoca o leitor. Concebê-la apenas com função moralizante é reduzir sua capacidade de nos fazer refletir sobre temas de grande importância, tendo em vista que ela é a arte que trata com maior profundidade os dilemas humanos (ciúme, ambição, morte, vingança). Digo mais, não cabe à Literatura nos ensinar comportamentos corretos, tampouco nos dá respostas certas ou trazer soluções para problemas sociais.

É diante destas perguntas que trago o romance Tudo é Rio (2014), da escritora brasileira Carla Madeira. Meu contato com a obra foi em 2022, fui impactada pela prosa poética de Carla. Simplesmente devorei o romance. O livro é um dos mais vendidos no Brasil desde 2021 e muitos críticos do livro dizem que Tudo é Rio romantiza a violência, eis que a personagem Dalva perdoa seu agressor. Nas palavras de Carla Madeira: “A história é sobre perdoar o imperdoável”.

A protagonista da obra, Dalva, é sofre uma violência praticada pelo marido Venâncio, contudo, não pede o divórcio, não denuncia, não vai até uma delegacia registrar um boletim de ocorrência, não pede medidas protetivas. Dalva poderia ter pedido o imediato afastamento de Venâncio do lar. O agressor responderia uma ação penal por violência doméstica no âmbito da Lei Maria da Penha. Mas Dalva não o fez. Dalva simplesmente ficou, aparentemente, resignada.

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A autora de Tudo é Rio é constantemente questionada a respeito do desfecho da história vivida por Dalva e Venâncio. A escritora é sempre muito feliz ao dizer que “Dalva fez aquilo que podia”. É possível compreender a atitude de Dalva e o epílogo da narrativa a partir da leitura de um belíssimo trecho, no qual a autora elenca as possibilidades da personagem: “Dalva poderia ter ido embora. Ido viver com a família. (…) poderia ter denunciado a violência de Venâncio, feito ele ir pagar na cadeia, espalhado sua crueldade a toda cidade, confessado ao padre o imperdoável, recebendo absolvição para odiar. (…) poderia ter encontrado um novo amor. Poderia ter mudado de rua (…) poderia ter se vingado. Poderia ter perdoado. Dalva poderia tantas coisas se pudesse. Mas só pode o que fez. Quem vê de fora faz arranjos melhores, mas é de dentro, bem no lugar que a gente não vê, que o não dar conta ocupa tudo. Dalva ficou, mastigou aquela dor e se alimentou dela”.

Assim como Dalva, uma mulher violentada, aos olhos de todos pode muita coisa, mas lá dentro ela só consegue fazer aquilo que pode e MUITAS VEZES ELA NÃO PODE NADA. Pesquisas sobre violência como Atlas da Violência, apontam como causas que fazem uma mulher vítima de violência PERMANECER ao lado do agressor a dependência econômica; a dependência emocional; os filhos; a vergonha pelo suposto fracasso na vida pessoal. Portanto, posso afirmar sem medo de errar: há milhares de Dalvas nesse país e, assim como na ficção, muitas ficam por motivos diversos.

Ainda que a obra já tenha sido lida por centenas de milhares de mulheres, ela não tem a força, tampouco a missão de mudar a vida de quem sofre violência em âmbito doméstico, porque a função da Literatura não é essa. Mas o que acontece com Dalva e Venâncio nos faz pensar, nos impõe a reflexão sobre a violência diuturnamente sofrida por milhares de mulheres. O que nós, enquanto leitores, precisamos é entender que a Literatura não tem compromisso com a realidade no sentido transformá-la. Por outro lado, quem escreve está ou esteve no mundo e dentro de um determinado contexto, portanto, vai trazer mazelas sociais, dramas existenciais, problemas éticos e morais de seu tempo.

Caro leitor, se você quer saber o que Venâncio fez para que o perdão de Dalva tenha sido classificado como “perdoar o imperdoável”, eu convido você a ler Tudo é Rio, romance que é narrado com uma linguagem poética ao mesmo tempo que aborda um tema tão cruel que traz desassossego ao leitor.

Em nosso próximo encontro (Parte 2), continuaremos a refletir sobre essa função que a Literatura não tem! E para nos ajudar a pensar sobre o tema, trarei uma polêmica personagem da Literatura Francesa, Emma Bovary, do clássico Madame Bovary, de Gustave Flaubert, que foi acusado de ofender a moral e os bons costumes na França do século XIX.

* Graduada em Letras pela UFPA; bacharela em Direito pela Unifesspa e leitora voraz, por amor e vocação.

Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.



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