Atualização 27 de agosto de 2020 por Redação
“Ela era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado”.
Carla nasceu menina azeitada no interior do Piauí. Cresceu por lá e só saiu quando, aos 17, o primeiro homem a arrastou para a cozinha do garimpo do Crepurizão, em Itaituba. Amou, cozinhou, garimpou, brigou e se escafedeu quando o macho quis lhe dar uns tapas nas ventas. Não era mulher de aguentar calada tamanha brutalidade.
Leia mais:
Quando se viu, estava em um bairro periférico de Altamira, onde outro homem lhe chamara de meu bem. Pescavam pacu, piabanha e mandi no final de tarde e comiam chibé na beira do Xingu, onde o único filho nasceu e se chamou Osvaldinho, em homenagem ao pai.
A vida estava calma demais e, doze anos depois, como num piscar de olhos, viu o marido sendo levado para cumprir pena por um assassinato que cometera e nunca lhe contara. Pronto, estava na rua de novo. E agora, com um filho de 8 que precisa de teto e comida.
Lembrou-se que em Marabá tinha uma prima que poderia lhe ajudar. Chegou por aqui no auge de Serra Pelada e o dinheiro corria solto. Não encontrou o endereço da prima, mas avistou um cabaré na Cidade Nova que todos chamavam de Casa de Tábua. Foi por lá que aquietou-se. Ganhou dinheiro – de dia e de noite – e conseguiu fazer o menino espichar.
Mas foi numa tarde de sexta, quando ela ariava panelas no lavatório, que escutou o papoco de 38. Tinham acabado de matar o filho na porta de casa. Dona Carla ficou sem chão. Não quis velório, não quis amigos por perto e nem viver. O cabaré ficou em luto por três dias.
Mas, ela não pisou mais os pés por lá. Era 1991 e acabou indo parar em uma fazenda na região de Eldorado, para voltar a cozinhar para homens. Por ali ficou doze anos peregrinos. Viu empregados desaparecerem quando reclamavam que o saldo na cantina estava errado.
Foi para a rede com três deles, mas não teve mais filhos. As agruras da vida lhe impuseram a esterilidade aos 40. Fazia amor sem amar. Sorria sem estar alegre. E conversava com os patrões sem querer falar.
Aos 50 já estava na cidade de volta. Vivia na casa de famílias a cozinhar, lavar e passar. Fazia de um tudo, até trocar cueiros dos filhos dos outros. Quando foi considerada “desnecessária”, lhe despediram e ela não teve para onde ir.
No final da década de 2000, Dona Carla foi a Itupiranga e conseguiu trazer de lá uma aposentadoria como lavradora. Pagou quitinete até quando pode. Há quatro anos, mudou-se para um abrigo de idosos, onde os amores reapareceram.
Primeiro foi Seu Zé. Um colega sorridente com quem trocava confidências durante o dia e beijinhos à noite, quando todos os cuidadores tinham ido embora e só um ficava por lá.
Durou nove meses e dois dias e só acabou quando Zé descansou numa madrugada chuvosa, gemendo e afagado por sua amada.
Carla recolheu-se de novo. Passou dois meses sem querer comer direito. Falava pouco e já tinha desistido de viver. Foi um outro idoso, também na casa dos 70, quem procurou dar-lhe novo ânimo para ver o futuro, com uma frase que, em sua pressa estouvada, logo soube decifrar: “Deixe que o tempo passe e já veremos o que traz.”
E mais uma vez ela encontrou o amor, mesmo que efêmero. Na madrugada, o novo affair saía na ponta dos pés e entrava, na surdina, no quarto dela e faziam um amor de pânico, com os sapatos calçados, com tudo, e mais inclinado a ir embora quanto antes do que a cumprir com seu prazer.
Carla recobrou o ânimo de vez, comprou perfume e dormia cheirosa para esperar a madrugada chegar.
Foi assim por três meses, até que ambos foram flagrados na cama juntos. E desta vez, não foi a morte, mas outras pessoas, quem lhe separou de uma paixão. A idosa percebeu, logo, que os sintomas do amor podem ser os mesmos da covid-19 quando interrompido: febre, dor de cabeça e perda do paladar…
De novo, dona Carla?
(Ulisses Pompeu)
* O autor é jornalista há 24 anos e escreve crônica na edição de quinta-feira