Vias alagadas, casas invadidas pela água, paradas de ônibus lotadas, problema na coleta de lixo, trânsito congestionado. Novamente, este tem sido o cenário de Belém desde o último sábado (7), período conhecido como “águas de março”. Após decreto de situação de emergência, um comitê de crise foi criado pela prefeitura de Belém para atender vinte bairros afetados pelos alagamentos. O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB), afirmou, na última segunda, que não há como fugir da responsabilidade, mas que, dentro das limitações financeiras, a natureza está sendo enfrentada e que está sendo feito “esforço monumental para reduzir impactos”. Zenaldo citou, ainda, que a coincidência de marés altas e os altos volumes de chuvas, aliados às “invasões”, são as causas do problema.
Para especialistas da área do planejamento urbano, os alagamentos não são causados apenas pela maré alta e a chuva. Estudos sugerem algumas soluções de prevenção que poderiam ser pensadas para evitar o problema que, ano após ano, ocorre em Belém. São as chamadas “medidas não estruturais”, diferentes das “medidas estruturais”, que incluem grandes obras de macrodrenagem, por exemplo. Entre elas, estão soluções mais sustentáveis para os padrões de canais de drenagem, as chamadas “infraestruturas verdes”; ampliação da arborização urbana; educação ambiental e utilizar bacias hidrográficas como unidade de planejamento territorial, de forma a aumentar a permeabilidade do do solo.
Segundo estudos científicos, a ausência de investimentos nessas medidas “verdes” contribui para que o histórico de alagamentos continue, por décadas, marcando o cotidiano de grandes cidades, como Belém, e trazendo prejuízos para a população, principalmente, a mais pobre.
Leia mais:Muitas dessas pesquisas utilizam dados da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), veja nos mapas ao final, que apontam o nível de risco de alagamentos nos bairros. Em paralelo, nas áreas de maior risco de Belém são onde vivem a população de menor renda, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Outro fator agravante é a baixa cobertura vegetal da cidade, contribuindo para que a água não fique retida no solo, desaguando nas áreas mais baixas, onde também vivem as pessoas mais pobres.
Em Belém, estas mesmas áreas de maior risco ficam alagadas no mesmo período do ano – aproximadamente 44% do território. Uma delas é o entorno do cartão-postal da cidade: o Mercado do Ver-o-Peso, que foi até palco de protesto de canoeiros. A maioria, no entanto, é na periferia.
Problemática do alagamento é também política
“Há uma tendência muito grande de atribuir o problema somente a fatores naturais. É um discurso padronizado, dito no mundo todo, que faz parecer que não tem nada a ver com os administradores públicos. É dito que há investimentos, mas não tem nada a ver com investimentos em saneamento e infraestrutura para a periferia, que é onde as pessoas mais sofrem”, afirma Juliano Ximenes, arquiteto, urbanista e professor na Universidade Federal do Pará (UFPA).
Para o pesquisador, a situação não é apenas tecnológica, ambiental ou urbanística, mas também política. “Infelizmente, ocorre este fenômeno mundial de políticos conservadores não chamarem a atenção para o problema da desigualdade, pois nos alagamentos, por exemplo, quem morre, quem perde geladeira, sofá, documentos, é o pobre. São as áreas sem infraestrutura, as ruas mal pavimentadas que alagam, complicando até a saúde dessas pessoas. Por isso, a desigualdade é um problema sério em um país como o Brasil”, explica.
Segundo Ximenes, a cidade precisa se estruturar enquanto território para ter melhor desempenho e, principalmente, considerando as condições naturais do espaço.
“A cidade não vai mudar porque a gente ocupou o solo de uma determinada forma. A gente é que tem que produzir uma cidade cujo desempenho seja mais favorável às condições que encontramos aqui“, explica.
Previsão e planejamento
Do último fim de semana até o início da manhã de segunda, choveu em Belém um total de 332.4mm, o que representa 74% da média esperada para o mês de março, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Na última segunda, Zenaldo informou que em Belém choveu em dois dias o que estava previsto para vinte dias.
Embora os alertas da meteorologia estejam sinalizados, o professor Ximenes defende que a chuva ocorrida esta semana não é excepcional, pois ela deveria estar dentro do planejamento:
“Digamos que você tenha um problema diagnosticado, mapeado, com estudos no campo da geografia, engenharia, que datam desde os anos 40, 50. Então, não é um problema novo! Não é uma chuva excepcional, considerando nosso histórico das últimas décadas. É uma chuva forte, sim, mas que deveria estar dentro do planejamento da nossa urbanização, pensando a macro e a micro drenagem”, argumenta.
Para esta quinta (12), estava previsto maré alta de 3,6m, às 1h54; e 3,5m às 14h15, nível considerado altíssimo. A previsão é de tempo encoberto com pancadas de chuva.
Ocupação desordenada
Um dos processos que marca o cenário urbanístico é a denominada “favelização” ou a ocupação desordenada nos grandes centros urbanos. Diferente de cidades como Rio de Janeiro, onde a periferia se encontra nos morros, a capital do Pará tem a população mais pobre vivendo em áreas mais baixas, as chamadas “baixadas”.
Como explica o arquiteto e pesquisador Thales Miranda, o espaço urbano é desigual para esses grupos. “O alagamento é algo construído, que afeta principalmente quem está nas camadas sociais mais vulneráveis. Todos sofrem, mas os mais pobres sofrem mais. E essa população é, em sua grande maioria, negra”.
Dentro do Laboratório Cidades na Amazônia (Labcam), na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA, o pesquisador tem desenvolvido estudos desde 2014 sobre áreas verdes e sustentabilidade. Em desenvolvimento da pesquisa de mestrado, ele investiga a produção social do espaço urbano de Belém, a partir de mapas que mostram o nível de risco de alagamentos na cidade; o relevo; os indicadores sociais; a vegetação, entre outros.
Para Miranda, um dos fatores que contribui para que a população mais pobre e negra esteja nos ambientes mais críticos durante os alagamentos é a complexa gestão de uso do solo.
“Quando é feita essa administração correta, ela ocorre nas áreas interessantes ao mercado imobiliário, no grande centro, o qual a população de menor renda não tem acesso. Por isso, não se pode culpar a população que passa a morar nesses espaços vazios, precariamente, sem infraestrutura básica adequada, e que podem acarretar em problemas de alagamento, como é o caso da av. João Paulo II, por exemplo. O Estado deveria ter mecanismos efetivos de gestão do espaço urbano para que essas pessoas pudessem ter acesso à moradia formal adequada, como está previsto na Constituição Federal”, conclui.
Outro lado
Questionada sobre as medidas de prevenção aos alagamentos e aos investimentos em planejamento urbano e em saneamento, a prefeitura de Belém disse que equipes da Secretaria Municipal de Saneamento (Sesan) atua em toda a cidade com limpeza manual para impedir obstrução de canais.
Em nota, informou que o comitê de crise atende áreas afetadas e presta assistência aos moradores que estão em situação de vulnerabilidade social.
A prefeitura também lançou uma campanha de doações, que podem ser entregues na sede da Defesa Civil Municipal, na Aldeia Amazônica, localizada na av. Pedro Miranda.
(Fonte:G1)