Nas últimas semanas, vários estudos divulgados revelaram o aumento e a extensão da pobreza no Brasil, que fomentaram discussões sobre a desigualdade estrutural no país. Na terça-feira passada, a Câmara dos Deputados entrou no debate quando o presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) anunciou que vai começar a tramitar projetos para um pacote social. No Brasil, os gastos com proteção social, incluindo serviços públicos, como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), aumentaram de 15.5% em 1995 para 18.5%, (último dado disponível), de acordo com o Relatório Global de Proteção Mundial da Organização Mundial do Trabalho (OIT). Mesmo assim, o país amarga a nona posição entre os mais desiguais do mundo, de acordo com a Oxfam.
O dinheiro fica nos andares de cima da pirâmide social e quase não chega à base, afirmam especialistas ouvidos. Eles indicam a expansão do programa Bolsa Família como o melhor caminho para enfrentar o problema; apontam o poder público como promotor da desigualdade, ao alocar recursos de maneira desigual; e veem espaço fiscal para mudar a realidade por meio do remanejamento de gastos e tributos.
“O Brasil transfere renda incrivelmente mal. O grosso está indo para a metade de cima, especialmente para os 10% do topo. Do total de transferências, o Bolsa Família representa apenas 0,44% do PIB e o BPC (Benefício de Prestação Continuada), menos de 1%. Depois vem todo o resto, mas esses dois são as transferências que chegam aos mais pobres”, explica Sergei Soares, pesquisador do Ipea.
Leia mais:De acordo com estudo coordenado por Soares, em 2016 e 2017 a proteção social foi fundamental para evitar que os efeitos negativos da crise econômica aumentassem a desigualdade. A participação do salário na renda total da população caiu de 75,3% em 2016 para 74,5% em 2017. No entanto, os rendimentos oriundos de programas de proteção social – previdência, Bolsa Família, BPC e outras fontes, cresceram de 21,1% para 21,8% no período. O coeficiente de Gini apresentou uma queda marginal de 0,18 ponto entre 2016 e 2017: 0,541 para 0,539.
Soares explica que a leve oscilação ocorreu devido às mudanças na composição da renda total, que substituíram, em termos de participação, a do trabalho por outras. “O sistema de proteção foi fundamental para que não aumentasse ainda mais a profunda desigualdade, disse. Em outro estudo, ele propõe a fusão dos orçamentos do Bolsa Família, do Abono Salarial, do Salário-Família e da dedução por dependente para crianças no Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), que somam R$ 52 bilhões, recursos suficientes, para Soares, para formar um único programa mais concentrado com potencial de gerar maior impacto. Sem a pulverização dos programas, ele acredita que os benefícios cheguem a quem realmente precisa por meio de uma eficiente utilização do Cadastro Único para Programas Sociais.
Entusiasta do Bolsa Família, Pedro Ferreira Cavalcanti, da Fundação Getúlio Vargas, considera os programas de transferência de renda eficientes e baratos e defende gastar mais com eles do que com isenções fiscais. “O Bolsa Família não chega a 0,5% do PIB, enquanto os incentivos tributários somam 4% do PIB”, compara
Ele explica que a compensação da desigualdade pode ocorrer pela transferência direta de impostos cobrados dos mais ricos para os mais pobres, via programas sociais, ou gastando mais com serviços utilizados pela classe desfavorecida. “O Brasil faz mal as duas coisas”, avalia. Para ele, um exemplo de desigualdade promovido pelo Estado é manter regimes tributários diferentes para contribuintes com o mesmo potencial contributivo.
Robin Hood às avessas
Recentemente, ao anunciar o Programa Verde e Amarelo, para geração de empregos para jovens, o governo foi na direção contrária da apontada pelos especialistas ao tributar em 7,5% quem recebe o salário desemprego como fonte de receita para oferecer desoneração ao empregador. “Não há evidência internacional de que esse tipo de incentivo tem impacto duradouro no emprego, e tirar de desempregado para transferir para o empregador, me parece um Robin Hood às avessas. Deve haver outras fontes menos regressivas”, diz Cavalcanti.
“Temos outros exemplos, como a isenção tributária da Zona Franca de Manaus até o absurdo de descontar do Imposto de Renda o valor pago a empregados domésticos, subsidiando a vida boa da classe média. Aumentar o valor do Bolsa Família tem um impacto brutal na redução da pobreza. Se dobrasse o benefício, o impacto sobre as pessoas e a economia seria muito grande com reflexo no consumo. Afinal, não é isso que a equipe econômica espera ao liberar saques do FGTS? Por que não aumentar o Bolsa Família?”.
Marcelo Neri, economista da FGV-Social, mostra esse impacto com números. “O Bolsa Família ajuda a girar as rodas da economia e não custa tanto. Aumentar o programa causa impacto econômico, porque os pobres consomem mais da renda do que outros setores da sociedade, portanto o efeito multiplicador é maior. Para cada real gasto com o Bolsa Família, o PIB cresce R$ 1,78. No caso do BPC, o efeito é de cerca de R$ 1,20, já com a Previdência, é de R$ 0,53”, explica.
Sem reajuste, o valor unitário mensal pago pelo Bolsa Família, de R$ 89,00, está abaixo da linha de extrema pobreza estabelecida pelo Banco Mundial, de R$ 145 per capita por mês. “A linha de extrema pobreza e de elegibilidade para o Bolsa Família tem que ser compatível. Atualmente o programa não reflete os indicadores de extrema pobreza, o que é prejudicial. É preciso reajustar os parâmetros”, afirma.
Do pacote com as propostas de combate à desigualdade e à pobreza, anunciado por Maia na terça-feira, consta incluir o Bolsa Família na Constituição e garantir reajustes acima da inflação, além de uma modalidade específica do programa para crianças. O grupo que elaborou a proposta promete apresentar uma PEC na próxima semana com seis projetos de lei que incluem ainda políticas para água e saneamento.
“Colocar o Bolsa Família na Constituição é uma medida extrema, mas o Brasil tem várias coisas na Carta que não beneficiam os mais pobres, então, é importante proteger o Bolsa Família. Talvez fosse bom que nada estivesse na Constituição e que houvesse uma política de Estado que mantivesse o valor do programa”, diz Neri. Para Soares, o foco tem que ser a infância. “No Brasil, infância é igual a pobreza. Temos 53 milhões de crianças, 17 milhões não recebem nenhum benefício e, dessas, dois terços estão na metade de baixo da pirâmide e 50% são o público-alvo do Bolsa Família, que é um superprograma”, opina.
“Não tenho sonhos”
Aureliano Vieira da Silva, 63 anos, está desempregado, e uma dor constante que sente nas pernas dificulta que ele consiga trabalho. Morador da Estrutural, recebe um benefício mensal de R$ 91,00. Ele não tem acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), que transfere um salário mínimo a idosos em situação de extrema pobreza, a partir de 65 anos, e a deficientes. “Não consigo me manter com o benefício. Preciso de ajuda. Não tenho muitos sonhos, mas, se pudesse, queria ter uma aposentadoria”, disse Aureliano ao Correio, enquanto aguardava atendimento no Cras, unidade de assistência social na Estrutural.
Ele conta que, às vezes, consegue fazer bicos. “Quando minha saúde permite, eu faço uns bicos de pedreiro. Mas nada muito pesado, pois não dou conta de carregar saco de cimento, areia e subir escadas”, relata.
Mãe de quatro filhos e avó de três, Juciléia Alves de Jesus, de 42 anos, também usuária do Cras, recebe o Bolsa Família. “Não dá para o básico. Falta gás e, muitas vezes, o que comer”, diz. Ela conta que o marido foi embora quando as crianças eram pequenas. Seu sonho: “morar em uma casa que não seja de madeira e que não alague”.
“O arranjo de seguridade social está todo vinculado ao trabalho. Quando se pensou no BPC, foi para pessoas que são estruturalmente vulneráveis, como deficientes e idosos, excluídos do mundo do trabalho. Foi a grande conquista da Constituição de 1988. Nosso grau máximo de civilidade, o entendimento de que há um segmento que o mercado não vai absorver. E, com o aumento da longevidade e a tecnologia, esse contigente vai aumentar”, diz Ieda Maria Nobre, doutora em política social e ex-secretária nacional de assistência social (2015- 2106).
Conferência da sociedade
Nesta segunda (25/11) e terça (26/11) será realizada a Conferência Democrática de Assistência Social. O encontro, que acontece no auditório Nereu Ramos da Câmara dos Deputados, vai discutir o impacto do teto dos gastos públicos no financiamento da assistência social. Segundo a presidente do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), Aldenora González, pela primeira vez, desde 1995, o governo federal não convocou a conferência. Por isso, o encontro vai acontecer pela iniciativa da sociedade civil. Por meio de nota, o Ministério da Cidadania informou que “os encontros da Assistência Social devem seguir o rito da Conferência Ordinária e a deste ano seria extraordinária, por isso, não foi convocada”.
Segundo Alderina, as conferências ordinárias são realizadas a cada quatro anos e as extraordinárias, a cada dois, desde que o CNAS foi instituído pela Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) em 1993. “O CNAS convocou a conferência, mas um dia depois, o ministro Omar Terra baixou uma portaria desconvocando”, disse. “Foi solicitado aprovação de dois terços da plenária do Conselho do CNAS para realizar a conferência. Isso é inédito. Nunca aconteceu. Todos os estados realizaram suas conferências este ano, além de mais de três mil municípios, mas o governo federal não quis realizar o encontro nacional”, lamenta.
Crise na assistência
Para ela, o governo cria dificuldade para o debate justamente quando a assistência passa por uma crise. “Neste momento de aumento de pobreza, desemprego e congelamento de recursos, é muito importante fazer o debate, ouvir sobre o que está acontecendo no Brasil. É angustiante ver o sofrimento dos municípios com a falta de recursos para a assistência”, afirma. Ela conta que, em Umuarama (PR), visitou um sopão, de iniciativa da sociedade civil, que teve 80% de aumento da demanda. “Sem ajuda do Estado, as pessoas recorrerem a esses centro comunitários, que estão sobrecarregados”.
A Loas regulamentou o artigo 204 da Constituição de 1988, que determina o direito à assistência social. Em 2005, foi criado o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) nos moldes do SUS , para organizar a assistência em todo o território em rede com estados e municípios, que recebem transferência da União de fundos constitucionais da seguridade social.
Ainda em consolidação, o SUAS é formado por 8.387 Cras (centro de acolhimento e abordagem a pessoas vulneráveis), 2.720 Creas (especializado em vítimas de violência), 229 centros pop (para população de rua) e 28 centros dias (para idosos). Normalmente, esses centros oferecem café da manhã, alguns oferecem almoço, orientação sobre acesso a políticas públicas e atenção psicológica, alguns oferecem atividades. Segundo Aldenira, para 2020, o orçamento da assistência social está 46,11% menor se comparado ao de 2018 e 46,43% menor do que 2019. Ela afirma que são necesários R$ 2,2 bilhões para complementar o orçamento deste ano e R$ 1,1 bilhão para o do ano que vem. (AE)