“Feliz”, com essa única palavra em português, o indígena W.S.T. expressou o que estava sentindo na manhã da última terça-feira (9), ao se despedir da República Terapêutica de Passagem (RTP) para retornar ao convívio dos seus familiares, numa aldeia da etnia Tembé, localizada entre os municípios de Capitão Poço e Santa Luzia do Pará, depois de 12 anos longe da família. Ele estava morando na RTP desde 2016 e é um dos 55 egressos do Hospital Geral Penitenciário (hospital de custódia).
Sua volta à aldeia é resultado de um longo trabalho desenvolvido em quatro anos, envolvendo a Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa), a Superintendência do Sistema Penal (Susipe), o Poder Judiciário, a Defensoria Pública, a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Casa de Saúde Indígena (Casai) e o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), para convencer o cacique e a família a receber W.S.T. de volta.
A RTP é um serviço de acolhimento temporário em saúde mental que busca a ressocialização dos egressos do hospital de custódia, que já cumpriram sua medida de segurança e não possuem vínculos familiares favoráveis para a sua volta e nem condições de autogerência. É uma unidade ligada ao 1º Centro Regional de Saúde (CRS), funciona no município de Ananindeua e tem apoio técnico da Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis às Pessoas com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP), que é ligada diretamente à Diretoria de Políticas de Atenção Integral à Saúde (Dpais) e é responsável pela inserção do paciente na RTP depois da saída do hospital de custódia.
Leia mais:Trabalho da EAP – O terapeuta ocupacional e coordenador da EAP, Alan Reis, informou que o papel da equipe é fazer a conexão entre o Poder Judiciário e os serviços de saúde do território de residência de cada paciente. “A partir do momento que uma pessoa comete um crime em função de um sofrimento psíquico, a Justiça pede que ela seja avaliada por um perito psiquiatra. Com essa confirmação, o juiz aplica àquela pessoa a medida de segurança, que é, na verdade, a absolvição do crime e o tratamento do indivíduo”, explicou Alan.
Segundo ele, até 2014, a medida de segurança estava sendo cumprida com tratamento psiquiátrico no hospital de custódia dentro do Complexo Penitenciário de Americano. No entanto, a partir daquele ano, com o surgimento da EAP, foi proposto um redirecionamento desse modelo baseado na portaria 94 de janeiro de 2014, do Ministério da Saúde, que instituiu e propôs a adesão dos governos estaduais a esse novo serviço.
Com a adesão do Pará, a equipe foi formada e habilitada pelo Ministério da Saúde e começou a trabalhar. O primeiro passo foi dialogar com os Tribunais de Justiça, informando que além da lei de Medida de Segurança existia a Lei da Reforma Psiquiátrica, preconizando que só deve haver internação quando todos os recursos extra-hospitalares, como Centros de Atenção Psicossocial e Unidades de Saúde forem insuficientes para cuidar do paciente. “Priorizamos o tratamento em comunidade, utilizando os recursos da cidade”, enfatizou Alan.
De acordo com o terapeuta, a EAP percebeu que grande parte dos pacientes no hospital de custódia já havia perdido o contato com seus familiares há tempos e, considerando que a Unidade de Reabilitação Psicossocial (antigo Ciaspa) estava ficando desocupada, por causa da ida dos últimos remanescentes do antigo hospital psiquiátrico “Juliano Moreira” para as residências terapêuticas, surgiu a proposta de que o espaço servisse para acolher os egressos do hospital de custódia que estavam distantes da família.
História – W.S.T., de 35 anos, ficou internado por oito anos no hospital de custódia por ter cometido um delito no momento de uma crise. Quando o triste episódio ocorreu, ele estava há vários meses em surto e sem receber nenhum tipo de tratamento.
Alan contou que o processo de ressocialização de W.S.T. começou no final de 2015, quando ele saiu do hospital de custódia para ser operado, no Hospital Regional de Paragominas, de uma hérnia umbilical causada por luta corporal. O caso chegou à EAP, em janeiro de 2016, por meio do Dsei, que informou que não havia como W.S.T. retornar para a sua aldeia porque os familiares não estavam aceitando o retorno dele.
De lá, ele teve o quadro estabilizado no Caps Renascer e foi para a Casa de Saúde Indígena (Casai). Enquanto estava na Casai, foi montado um grupo de trabalho envolvendo diversos setores da Sespa, como Coordenação de Saúde Mental, Coordenação de Saúde Indígena e Populações Tradicionais, Dpais e instituições indígenas para buscar uma solução, que foi a ida dele para a República, onde passou a morar desde 2017.
Por meio da RTP, W.S.T. conseguiu benefício de prestação continuada e foi inserido no Programa de Volta pra Casa, o que lhe assegurou uma renda mensal de um pouco mais de um salário mínimo.
A partir daí, a EAP iniciou duas frentes de trabalho, garantir uma moradia para ele e fazer a conexão com a aldeia, para convencer as lideranças indígenas e os familiares, de que era possível cuidar dele no seu próprio território, mas não foi aceito.
Já em 2017, a EAP descobriu que ele tinha um irmão em outra aldeia, e novo trabalho de reaproximação foi iniciado e o objetivo alcançado em maio deste ano com o apoio do cacique. Lá também vivem dois filhos do W.S.T. que, juntamente com seu irmão, vão apoiá-lo nessa nova vida. Ele vai morar numa casa própria construída com recursos que economizou enquanto estava na RTP.
Expectativa – “Nossa expectativa é a melhor possível, pois muitos já o consideravam um desaldeado. É uma conquista muito grande por ele poder retomar a sua cultura e os seus vínculos ancestrais. Tudo isso tem um simbolismo muito forte. A perspectiva que a gente tem é de melhoria do quadro clínico dele”, disse Alan, acrescentando que a rede de saúde dos municípios da região foi acionada e também fará o acompanhamento do caso, para não haver falhas no processo terapêutico.
A assistente social da EAP, Solange Silva Souza, informou que a equipe continuará a fazer um monitoramento do caso, a cada três meses in loco e também por meio de diálogo permanente com os serviços do SUS na região. Para ela, o resultado positivo leva a um ressignificado do trabalho, com uma nova análise do sofrimento mental, principalmente em relação às pessoas que cometeram delito.
“Eu venho acompanhando o W.S.T. desde 2013, quando ele ainda estava no hospital de custódia. O trabalho de diversas instituições, como da Defensoria Pública, foi fundamental nesse processo de desinternação e reinserção social. São quatro anos de luta, e nunca um diálogo foi tão ampliado como este para fazer a desinstitucionalização do W.S.T.. É um momento de conquista, de vitória, da própria Sespa, que dá esse suporte todo e assegurou todos os serviços para ele, pois nem certidão de nascimento ele tinha”, comemorou a assistente social.
Apoio da República – O diretor do RTP, John Moorney, informou que a República Terapêutica trabalha como suporte para a EAP. “Esse trabalho de hoje, aqui, é uma vitória da EAP, da RTP e do governo do Estado, por meio da Sespa, conseguindo com que um morador nosso retorne para o convívio familiar”, festejou John.
Ele explicou que só ficam na RTP os egressos que perderam contato com a família ou que o vínculo familiar esteja fragilizado. Encontrar parentes e resgatar os laços perdidos há tempos é mais um trabalho da EAP, que entra em ação desde o processo de desinternação do paciente do hospital de custódia.
A técnica em enfermagem, Sônia Reis, que trabalha na República, e é uma das pessoas em que mais W.S.T. confia, estava feliz com o resultado e também o acompanharia, juntamente com Alan, até a aldeia. “É um trabalho novo e diferenciado. Me sinto realizada, ver a evolução de como ele chegou e o estágio em que se encontra hoje. Vale a pena. Quando há dedicação e amor acima de tudo, a gente consegue”, afirmou a servidora pública. (Agência Pará)