Em seis anos de pontificado, papa Francisco já canonizou 892 santos. E a esta cifra podem ser somados outros cinco anunciados, entre os quais a brasileira irmã Dulce Pontes (1914-1992), cuja cerimônia de canonização, confirmada nesta segunda-feira (1º), será dia 13 de outubro.
O número é um recorde. Antes de Francisco, o maior canonizador da Igreja havia sido João Paulo 2° (1920-2005), que em 26 anos de pontificado fez 482 santos. O terceiro do ranking é Leão 13 (1810-1903), com 148 santos em 25 anos.
O levantamento foi feito pela reportagem da BBC News Brasil a partir do cruzamento de informações disponibilizadas pela Congregação das Causas dos Santos, órgão do Vaticano responsável pelos processos de reconhecimento, com dados de pesquisa do teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Júnior, chefe do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Leia mais:“O pontificado de Francisco é um grande florescer do trabalho semeado por João Paulo 2° e arado por Bento 16”, comenta padre Roberto Lopes, delegado Arquiepiscopal da Causa dos Santos do Rio de Janeiro. “Francisco é uma primavera para futuros santos e santas, mostrando ao mundo o rosto da santidade fecunda do cristianismo.”
De acordo com Altemeyer Júnior, a tendência dos pontificados recentes é “colocar a santidade como atitude vital normal de pessoas normais”, sem “excepcionalidades”.
“Daí a vontade de multiplicar os exemplos e trazê-los para os tempos atuais. Como irmã Dulce, pois eu mesmo e milhares de brasileiros conviveram com ela, tocaram nela, falaram com ela, são contemporâneos a ela. É como se eu dissesse: ‘puxa, eu conheci e vivi com um santo e ele era normal e ao mesmo tempo uma pessoa iluminada; eu também posso ser santo’.”
Canonizações coletivas
O número extraordinário de santos canonizados por Francisco tem explicação nas canonizações coletivas, em que o atual papa de uma só vez reconhece a santidade de um grupo de mártires.
O recorde absoluto foi a canonização, em maio de 2013, dos mártires de Otranto: os 813 habitantes da cidade do sul da Itália liderados pelo alfaiate Antonio Primaldo, dizimados por tropas otomanas em 14 de agosto de 1480.
Antes disso, a maior canonização coletiva da história havia sido feita por João Paulo 2° que, outubro de 2000, reconheceu a santidade, de uma só vez, de 120 mártires chineses.
João Paulo 2° costumava fazer canonizações coletivas. Em maio de 1984, por exemplo, reconheceu a santidade, de uma só vez, de 103 mártires coreanos. Nos anos seguintes, ele declararia santos mártires do Japão (16), do Vietnã (117) e do México (25).
Francisco também realizou outras canonizações coletivas. Em outubro de 2017 canonizou, de uma só vez, os 30 protomártires brasileiros, também chamados de mártires de Cunhaú e Uruaçu.
Para o religioso Marcelo Toyansk Guimarães, frade da Província dos Capuchinhos de São Paulo, embora “a fama de muitas canonizações” fosse de João Paulo 2º, o jeito com que Francisco conduz a Igreja traz uma abertura que propicia o reconhecimento de mais santos.
“O atual pontificado é sinodal, colegiado, descentralizado no sentido positivo do termo”, afirma ele. “Isso facilita o reconhecimento de testemunhos e santos nas mais várias e diversas realidades.”
Assassinado por um militar do exército de El Salvador enquanto celebrava uma missa, Romero tinha um discurso contundente contra as mazelas sociais. Tornou-se o primeiro santo nascido na América Central.
Distorção eleva média anual
“O número de santos canonizados por papa Francisco pode parecer absurdo se comparado com os demais papas pelo fato de que ele canonizou Antonio Primaldo e 812 companheiros. Sem esse grupo, seriam apenas cerca de 80 santos”, comenta o padre Arnaldo Rodrigues, brasileiro que atualmente trabalha no Vaticano.
A média de Francisco, considerando os cinco santos já anunciados, é de 150 santos por ano. Descontando a distorção de 813 mártires de Otranto, sua performance canonizadora fica em 14 reconhecimentos por ano.
João Paulo 2°, incluindo todas suas grandes canonizações coletivas, fez 18 santos por ano de pontificado. Bento 16 teve uma média de seis santos por ano. O terceiro papa com maior número absoluto de canonizações, Leão 13, também teve uma média anual de seis novos santos.
Uma maneira de quantificar a assiduidade de tais processos, relativizando a questão das canonizações coletivas, é contar a quantidade de cerimônias de canonização, em vez de quantidade de santos resultantes delas.
Em números absolutos, o líder nesse quesito é João Paulo 2°, com 52 missas dedicadas a novos santos. Na sequência estão Leão 13, com 22 cerimônias; Paulo 6° (1897-1978), com 21. Francisco soma 19 – a vigésima será em 13 de outubro.
Ou seja: enquanto o atual papa realiza três cerimônias de canonização por ano, João Paulo 2° teve uma média de duas por ano. Bento 16 realizou 11 cerimônias de canonização em seus sete anos de pontificado – média de 1,6 ao ano.
“Francisco deseja que tenhamos muitos e muitos santos”, afirma padre Denilson Geraldo, editor da revista Scientia Canonica.
Ele lembra que, em março do ano passado, o papa publicou uma exortação apostólica justamente sobre o tema. “Francisco afirma que a universal vocação à santidade procura encarnar no contexto atual, com os seus desafios e oportunidades, uma forma de existência que deixa de lado uma vida superficial e indecisa.”
“Para Francisco, a santidade não está em vista de uma espiritualidade individualista, mas a santidade das pessoas forma um povo, o povo de Deus. Mesmo fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes, o Espírito suscita sinais da sua presente, que ajuda a própria Igreja a encontrar os caminhos para viver a santidade no mundo.”
“Creio que Francisco tem em mente uma igreja mais ágil em relação aos processos internos”, avalia o padre José Ferreira Filho, da Arquidiocese de São Paulo.
“Isso já acontece, por exemplo, em relação aos processos de nulidade matrimonial, em que se agilizou bastante os procedimentos a fim de encurtar os trâmites. Em ambos os casos, no entanto, não houve nem haverá flexibilização das regras que norteiam os processos.”
Ferreira Filho lembra que o papa João Paulo 2° já dizia que “precisamos de santos do nosso tempo”.
Homens são maioria entre santos
O cruzamento de dados realizado pela BBC News Brasil permite traçar algumas outras curiosidades entre os papas. Por exemplo, desde 1588, quando o papa Xisto 5º (1521-1590) instituiu uma congregação para estabelecer uma certa uniformidade no processo de canonização, foram reconhecidos 1873 santos, em 210 cerimônias.
Excluindo os 812 mártires de Otranto de identidade desconhecida, homens são 69% dos canonizados e mulheres, 31%. Padres, monges, frades, freiras e outros consagrados à vida religiosa são imensa maioria: 79% dos santos.
Leigos eram canonizados muito raramente no passado. No máximo um por pontificado. O primeiro papa a reconhecer a santidade de uma proporção expressiva de pessoas não consagradas à vida religiosa foi Pio 9 (1792-1878), que fez cinco santos pessoas comuns.
Seu sucessor Leão 13 canonizou 12 não religiosos. Pio 10, quatro. Bento 15 e Pio 11, apenas um cada. João 23, nenhum leigo. Paulo 6 canonizou 26 não religiosos.
João Paulo 2º conferiu uma certa equivalência a santos religiosos e leigos. Dos 482 santos que ele fez, 246 foram padres, freiras e afins; quase o mesmo tanto, 236, foram pessoas leigas.
Bento 16 voltou a dar peso maior aos religiosos. Em seu pontificado foram apenas quatro santos leigos, contra 41 de vida religiosa.
Excetuando-se os 812 mártires de Otranto de identidade desconhecida, Francisco já canonizou 40 religiosos e 40 leigos. Mas, é altamente provável que a esmagadora maioria dos 812 de Otranto seja leiga, uma vez que se trata de toda a população de uma cidade.
Desburocratização e investimento
Mas a agilidade da “fábrica de santos” atual do Vaticano, contudo, tem uma explicação que vem desde muito antes de Francisco.
Conforme explica o padre Roberto Lopes, delegado Arquiepiscopal da Causa dos Santos do Rio de Janeiro, os processos de canonização foram facilitados por João Paulo 2° e Bento 16. E por causa disso, Francisco agora consegue canonizar mais.
João Paulo 2° publicou dois documentos sobre o tema em 1983.
“Ele pôs em prática as reformas do João Paulo 2º e já foi um facilitador para a Igreja que queria mostrar seu rosto de santidade não apenas em seus padres e freiras, mas principalmente em leigos e leigas”, afirma Lopes.
Padre que trabalha com causas de canonização em Roma, o frade Reginaldo Roberto Luiz resume o que foi essa “simplificação” de 1983.
“Antes, eram necessários quatro milagres para a canonização. Agora, são dois milagres”, afirma ele.
“Em 17 de maio de 2007, papa Bento 16 publicou a nova instrução para os inquéritos diocesanos das causas dos santos, que simplifica os processos e permitem que os mesmos sejam realizados nas arquidioceses, dioceses de todo mundo, sendo presididos não apenas pelo papa, mas pelo prefeito da Congregação das Causas dos Santos ou representante papal constituído”, acrescenta Lopes.
Mas o atual papa também vem simplificando.
“Um ponto facilitador dos processos durante o pontificado de Francisco foram as novas normas que facilitaram o pagamento das custas dos processos. Criou-se, inclusive, um fundo para ajudar as causas com dificuldades financeiras”, acrescenta padre Lopes.
Há também, segundo ele, “uma regulamentação mais justa e menos complicada para os estudos dos casos que poderão ser proclamados milagres”.
Além do aumento das pessoas dedicadas a fazer um processo de canonização andar no Vaticano. São os chamados postuladores, os “advogados” que preparam dossiês e estudos para defender a santidade de alguém junto ao Vaticano.
Conforme conta o frade Reginaldo Roberto Luiz, em 1983 eram cerca de 30 os que atuavam nessa função. Hoje são 400 postuladores.
Segundo ele, o Brasil hoje tem mais de cem causas em andamento.
(Fonte:BBC)