Correio de Carajás

Carta de Elisa II – direto da Alemanha

Amigos e amigas:

Minha experiência na Bélgica foi algo extraordinário pelo tanto de aprendizado em poucos dias. Agora mais acostumada com a rotina de encontrar uma nova equipe ou organização duas vezes por dia, minha experiência na Alemanha me tirou da zona de conforto e me acostumei a valorizar a liberdade de vivenciar o inesperado!

Elisa e Dan se retratam ao lado das Metas do Milenio da ONUJPG

Chegando à Alemanha depois de uma hora e meia de viagem, eu e Dan fomos recebidos na super-moderna estação do trem da cidade medieval de Colônia, por Antônia Vogelgsang, gestora internacional responsável pela organização de todas as turnês do projeto KinderKulturaKaravane (Caravana Cultura Infantil), na União Europeia. Na cozinha do velho apartamento dela, cheio de tambores, bonecos, fotos e pinturas, descobrimos que a Antônia era Brasileira afroindígena de Paudalho, Pernambuco, criada na Alemanha. Formada em Estudos Latino-Americanos e Ciências Policias.

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Formada em Estudos Culturais Pós Coloniais, já com uma história de vida em Moçambique, e fluente em Português, Alemão, Inglês e Espanhol, Antônia nos serviu um prato de moqueca de camarão com arroz, enquanto que nos preparávamos para nosso primeiro dia. Em seguida, encontrei os jovens com quem dividia o apartamento, um percussionista e uma psicóloga.

Elisa explica o calendário de Rios de Encontro ao pedagogo Bernd

Na próxima manhã, após um ensaio no porão do antigo prédio, encontramos o vice-prefeito da cidade, membro do Partido Verde, bem engajado na luta pela defesa da natureza.

Eu estava com dor de garganta e resolvi apenas tocar para não machucar minha voz, mas após de prestigiar uma pequena amostra de um grupo de crianças e adolescentes de El Salvador, eu me descobri cantando e tocando com força a primeira apresentação do meu solo para o fórum internacional em Barcelona. Foi tão espontânea e muito bem recebida. Mas percebi minha capacidade de superar o medo de adoecer a minha voz.

A curta introdução do Dan e meu solo ganharam uma conversa particular com o vice-prefeito, que ficou impressionado com uma jovem mulher que, com pouca idade e sem saber que Marabá era parte de Amazônia ou que tinha sangue africano e indígena nas suas veias, resgatou suas raízes e tornou-se defensora da Amazônia, o pulmão do mundo. Ela ficou apaixonada pelo Projeto Rios de Encontro.

Jovens da escola e Elisa se retratam com placa de Sextas pelo Futuro depois de uma roda e micro-oficina

 

Num almoço com professores de uma das escolas na região onde íamos apresentar, contei a história de uma criança buscando ventos para empinar sua pipa em tempos de seca. Como uma das coordenadoras de nosso festival da pipa, contei a história sobre a participação de meu filho Pietro e consegui sensibilizar e acalmar os professores experientes, preocupados com a capacidade de crianças entenderem por que a Amazônia estava secando. Perceberam quanto as crianças na plateia estavam conectadas em solidariedade com a criança no palco. Cada pergunta gerou ideias ao levar nosso coletivo. Foi cansativo para mim por conta da tradução e tanta concentração, mas a conversa foi de tanta qualidade que me deixou ansiosa para montar o espetáculo com nosso coletivo AfroRaiz.

À noite, assistimos o espetáculo comunitário de El Salvador, apresentado numa casa histórica de cultura em Colônia. No palco, trocaram uma cena sobre desafios de explicar a bandeira nacional pelos dramas de sua experiência de viagem, uma história sobre sua identidade cultural. O teatro popular me encantou, e me levou a refletir sobre meu próprio solo, tão ensaiado e preso no medo de errar ou me machucar. Depois de prestigiar o espetáculo de El Salvador, animado, interativo com o público infantil, com personagens lúdicos e afetivos, fui chamada por Ulla, a mulher sábia e responsável pela nossa turnê na Alemanha, para apresentar uma prévia de nosso espetáculo. Para não roubar a cena do grupo de El Salvador, convidei um menino do grupo para tocar comigo no palco e improvisei uma micro-oficina de palmas e ritmos, interagindo no palco com ele e brincando com a plateia. Meu solo apareceu, mas numa forma desconhecida por mim. Agradeci ao público e convidei todo o elenco de El Salvador a fazer o mesmo.

Elisa toca com um jovem de El Salvador no palco da Casa de Cultura

Naquela casa de cultura, uma gestora nos contou que ali mesmo mulheres foram mantidas presas, fazendo trabalho escravo, ganhando pouco por muito esforço. Na saída, entendi um pequeno monumento na parede, intitulado ESCRAVIDÃO NUNCA MAIS.

No dia seguinte, na madrugada, fomos para o aeroporto. Em Lisboa, tinha direito de colocar duas malas no porão, mas nessa viagem para Polônia, só uma foi permitida. Meu djembe foi bem embalado, mas acabou indo para o porão da aeronave, enquanto minhas garrafas de higiene acabaram ficando no aeroporto porque não passaram no detector de metal. A regra foi rigidamente aplicada e perdi todas as garrafas.

Mas no avião, uma aeromoça brasileira que nos atendeu, percebeu que eu falava português e logo perguntou se o Dan e eu somos casados. Fiquei sem graça e ao mesmo tempo chateada pela forma das pessoas pensarem sobre nós, mulheres brasileiras viajando para outro país. Mas logo falei sobre o projeto amazônico e por que estava na Europa. Ela se interessou até que me passou seu e-mail e número de telefone, para avisá-la da programação da turnê. Olhei para ela, presa na minha percepção e indignação, e a re-enxerguei aberta ao inesperado, solidária com um projeto socioambiental.

Fiquei muito grata por essa formação que tive, ansiosa para compartilhar tudo com os meus companheiros do coletivo AfroRaiz.

Elisa Dias