Fugir de nossas vidas digitais tornou-se praticamente uma missão impossível. Cada vez mais tecnologias disputam os nossos dados – e isso continua mesmo depois de nossa morte. Ninguém gosta de pensar no assunto, mas gerenciar nossas “pegadas digitais” póstumas está virando algo inevitável.
“Aumentaram as discussões em fóruns online sobre a morte e o que as pessoas querem que aconteça ao final de suas vidas”, conta Mark Taubert, diretor clínico e consultor de medicina paliativa do Velindre NHS Trust, um centro hospitalar de Cardiff, no Reino Unido, especializado em tratamentos de câncer em estágio terminal.
Taubert diz que muitos pacientes o questionam sobre a morte e o que acontece com seu legado digital depois dela. Ele se recorda de uma longa conversa que teve com um jovem em estágio terminal – atualmente já falecido -, que decidiu deixar mensagens e “uma dezena de vídeos incríveis” para que seus filhos os vissem quando ele já não estivesse mais vivo.
Leia mais:“Ele deixou instruções para sua mulher. Os filhos ainda não viram os vídeos, mas farão isso no futuro, quando se casarem ou se formarem, porque são mensagens específicas para estes eventos, para que eles saibam que estes dias são importantes.”
Taubert diz que algumas questões são cada vez mais frequentes. O que acontece com todas aquelas fotos compartilhadas no Facebook ou Instagram? O que fazer com a conta do Twitter? Aonda vão parar as mensagens de WhatsApp? E as músicas favoritas armazenadas na nuvem? O que acontece com os dados de uma conta bancária?
Uma caixa de recordações ‘digital’
James Norris, de 36 anos, decidiu se preparar para este momento. Deixou pronta uma mensagem de despedida que será publicada na internet e decidiu o que será feito com suas contas em redes sociais.
Ele diz ter refletido sobre a morte por muitos anos. Um dia, ele assistiu a um comercial em que o comediante inglês Bob Monkhouse se passava por um fantasma sobre seu próprio túmulo e alertava sobre o perigo do câncer de próstata, doença que tiraria sua vida em 2004. O anúncio foi veiculado depois da morte de Monkhouse.
“Pensei: se ele usou a televisão para dizer suas últimas palavras, agora, com a internet, podemos fazer o mesmo”, diz Norris, que teve assim a ideia de criar a DeadSocial em 2012, para administrar “legados digitais”.
Alguns anos mais tarde, em 2015, ele fundou a Associação do Legado Digital, uma organização britânica para dar assistência a profissionais de saúde, pacientes e cuidadores sobre como gerir as redes sociais e outros ativos digitais de pessoas que faleceram ou estão próximas de falecer.
Norris compara sua plataforma a uma caixa de recordações digital em que é possível deixar mensagens a serem enviadas para amigos e entes queridos. Ele diz que, a princípio, houve muito ceticismo quanto à ideia.
“Não havia muito interesse quando lançamos, era algo novo. Mas, agora, as pessoas começaram a falar sobre isso e a planejar o que acontece com sua vida digital. Até governos passaram a tratar dessa questão.”
Mas por que devemos nos preocupar com isso? “É importante porque nossos bens digitais têm um valor financeiro a ser transmitido para nossos beneficiários ou um valor social e sentimental, como é o caso de fotos e vídeos”, diz Gary Rycroft, presidente do Grupo de Trabalho de Ativos Digitais da Law Society da Inglaterra e do País de Gales, associação que representa advogados e juristas no Reino Unido.
Rycroft diz que passamos hoje muito tempo tentando criar nas redes sociais “a melhor versão” de nós mesmos. “Não deveríamos pensar o mesmo, então, em relação ao nosso legado digital?”
O advogado recomenda fazer um testamento digital e decidir ainda em vida quem será o responsável por todos os nossos bens digitais – como dados bancários, reservas de moedas digitais, contas em redes sociais e de email e arquivos pessoais – quando falecemos.
Mas a quem pertecem nossos dados?
No entanto, a questão legal de a quem pertencem nossos dados digitais é mais complexa, porque varia de acordo com o país.
Na Europa, por exemplo, pertencem ao indivíduo, enquanto empresas como Facebook têm a “custódia” destes dados, explica Gabriel Voisin, do departamento de proteção de dados da Bird & Bird, escritório de advocacia que assessoa empresas sobre questões tecnológicas. Mas, nos Estados Unidos, as companhias por trás destes serviços são as donas dos dados.
Voisin dá o seguinte exemplo: “Pense em uma carta enviada pelo correio. A empresa de correios não é dona da carta, só tem sua custódia. A carta é sua. O mesmo ocorre com dados pessoais se você vive na Europa. Por isso, é possível perdir a empresas como Facebook, Google, Amazon ou Apple uma cópia de seus dados e mensagens privadas se desejar ou eliminar toda essa informação”.
Mas não existe na América Latina uma regulamentação semelhante à lei que rege essa questão em toda a Europa. Cada país da região tem suas próprias regras, explica Paula Garralón, advogada do Bird & Bird.
“Isso gera uma falta de homogeneidade normativa que faz com que haja países em que o direito à proteção de dados tenha um amplo reconhecimento enquanto, em outros, é inexistente”, diz ela, que destaca, porém, que muitas legislações na América Latina se inspiram no sistema europeu.
Em termos gerais, os direitos de uma pessoa se “extinguem” quando ela falece, ainda que “a lei tenha levado em conta que familiares, herdeiros ou terceiros possam ter algum direito sobre estes dados, como reconhece a maioria das normas”.
Em países como Argentina e Uruguai, esse direito pertence aos sucessores naturais da pessoa. E em quase todos os países latino-americanos, “a morte supõe a extinção da personalidade”, diz Garralón.
“Mas, no México, o escopo é mais amplo, porque a proteção aos dados pessoais não se extingue, de modo que o direito pode ser exercido por qualquer um que demonstre um interesse legal legítimo.”
E no Brasil?
Renato Opice Blum, professor do curso de proteção de dados e direito digital do Insper, explica que o Brasil segue o modelo europeu, em que a titularidade dos dados é do indivíduo.
Ele diz que a nova lei de proteção de dados digitais do Brasil, que entrará em vigor em agosto de 2020, não trata do assunto. Por isso, questões nesta área continuarão a ser regidas pelo Código Civil e regras de privacidade em geral.
Opice Blum afirma que, de acordo com as leis de sucessões, bens digitais que tenham um valor financeiro são trasmitidos para os herdeiros da pessoa falecida. Já em relação aos bens que não têm valor financeiro, mas pessoal, como mensagens e correspondências, essa transferência pode não ocorrer automaticamente.
“Em alguns casos, os parentes não têm as senhas de quem faleceu e precisam entrar na justiça para que as empresas liberem o acesso ao conteúdo”, afirma Opice Blum.
“Como não há uma lei específica, existe a presunção de que tudo que pertencia à pessoa é transferido aos seus herdeiros, e existe uma tendência nos tribunais de reconhecer a transmissibilidade de dados digitais, mas, em muitos casos, é preciso obter uma ordem judicial.”
Uma forma de evitar ações judiciais, explica o advogado, é que a pessoa escolha ainda em vida nestas plataformas e serviços um curador do seu acervo digital póstumo, para dar acesso a suas contas a alguém quando ela vier a morrer ou não puder mais fazer a gestão dos seus dados por doença ou senilidade.
Uma alternativa usada com cada vez mais frequência é fazer um testamento digital, junto com um testamento de bens físicos ou em separado. “É um documento que vai ser aberto em juízo e mediante certas condições, para dar acesso aos bens digitais ao informar logins e senhas, por exemplo. É a opção que dá menos trabalho para os herdeiros.”
‘Redes sociais levaram a mudança na forma como experimentamos a morte’
No México, acaba de ser lançada “a primeira plataforma digital para informar amigos e familiares de forma mais rápida e simples sobre a perda de um ente querido”.
O InMemori é um serviço gratuito desenvolvido pela empresa de serviços funerários Grupo Gayosso a partir de um sistema criado pela empreendedora francesa Clémentine Piazza em 2016. Trata-se de uma página pela qual é possível compartilhar mensagens de pêsames ou recordações e fotos da pessoa falecida.
Óscar Chávez, diretor de planejamento e novos negócios da companhia, avalia que “as redes sociais levaram a uma mudança importante” na forma como experimentamos a morte.
“O uso de ferramentas digitais deve servir para comunicar de maneira efetiva os pontos importantes da despedida, aproximar as pessoas na hora de dizer adeus a este ente querido e dar a elas a oportunidade de se fazerem presentes neste momento”, diz Chávez.
Ele diz que o testemunho digital é “uma ferramenta de muito valor para a família”.
“Toda pessoa tem o direito de decidir o destino da informação que gerou ao longo da vida”, diz Garralón.
A advogada explica que as leis começam a se adaptar à sociedade em que vivemos, mas que isso ainda não ocorreu em todos os países. “Por isso, é recomedável configurar as opções de privacidade nas redes sociais que o permitam e, sobretudo, deixar claro a pessoas próximas o que queremos que seja feito com nova informação quando nos formos.”
Neste sentido, Norris oferece alguns conselhos sobre o que fazer em cada plataforma. Entre outras coisas, recomenda fazer uma cópia de segurança no Facebook e no Instagram e baixar uma cópia de seus dados para que seu parente mais próximo possa fazer uso deles. Já no Twitter, transferir a conta a um ente querido ou pedir que seja desativada.
Mark Taubert afirma que, além das razões óbvias de segurança, como dados de cartão de crédito, identidade e finanças pessoais, proteger nossos dados após a morte é importante, porque “nosso legado e recordações permanecem com outras pessoas durante um certo tempo, e nossos familiares e amigos podem querer conservar os momentos compartilhados”.
“Eu mesmo já pensei em apagar todas as minhas fotos e vídeo do Facebook no passado, mas depois me perguntei: ‘E se o Facebook continuar a existir em 2119 e meus netos quiserem saber o que eu fiz em 2019?”, diz o médico.
“Teria sido muito interessante poder fazer isso em relação a meus avós. Pode ser uma forma de gerações futuras experimentarem a história. Pode ser revelador, uma aprendizagem.” (Fonte: BBC)