📅 Publicado em 29/12/2025 15h58✏️ Atualizado em 29/12/2025 16h39
Aos 21 anos, Amaya Darcy concilia a rotina de universitária e trabalhadora em Marabá, enquanto enfrenta desafios inerentes a vivência de pessoas trans na Amazônia. Em entrevista ao Correio de Carajás, a estudante do sexto período do curso de Direito e recepcionista em um shopping da cidade, compartilha reflexões sobre identidade, acesso a direitos e os impactos dessas experiências em sua saúde mental e da comunidade.
Filha de Marabá, Amaya se define como uma pessoa de múltiplos interesses. Apesar de cursar uma área tradicional e pouco associada ao meio artístico, se conecta com atividades manuais e criativas.
“Eu costuro, faço crochê, pinto tela. Gosto muito de estar no meio do mato, no rio. A arte é uma forma de cura para mim”, compartilha.
Leia mais:Ocupando uma cadeira em um curso tradicionalmente elitizado, o Direito, ela revela que essa não foi uma escolha planejada. Após fazer o Enem em 2022 e perceber que sua nota a levaria para a universidade, ela viu uma oportunidade de unir dois lados de seu universo: “Eu juntei uma coisa que eu gostava, que é comunicação e luta por pautas de minorias, com a oportunidade de entrar na universidade”, explica.
E, apesar de perceber o acolhimento institucional da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Amaya sente falta de referências dentro do curso. Naquele ambiente ela não enfrenta desrespeito, mas não encontra identificação.
“Não tem professores trans, nem referências teóricas ou jurídicas produzidas por pessoas trans”, afirma. Para ela, essa falta de representatividade gera insegurança e aumenta a sensação de cobrança. “Uma coisa é saber que é possível porque você já viu alguém fazendo. Outra é ter que fazer do zero”, diz.

ATRAVESSAMENTOS
Se por um lado faltam referências e por outro sobra o sentimento de cobrança para se tornar uma, Amaya sente sua saúde mental sendo impactada. Mas essa sensação não é exclusiva de sua vivência na faculdade. Antes de ser uma mulher trans que ocupa uma cadeira em um curso tradicional, ela é uma mulher trans atravessada pelo seu cotidiano.
“Não dá para separar a universidade do resto da vida. Eu trabalho, pego ônibus, enfrento pessoas todos os dias. Isso tudo pesa”, afirma. Para ela, os desafios seriam significativos mesmo para uma pessoa cisgênero, mas se intensificam no caso de pessoas trans.
É nos ambientes da vida corriqueira, onde estranhos não se olham nos olhos e o comum vira pano de fundo para as vidas que correm pelas ruas, prédios e lares, que vez ou outra Amaya é observada de maneira marginalizada.
Seja na universidade, no ônibus, na rua ou no trabalho, Amaya está constantemente exposta ao público. Nesses ambientes, ela relata que o uso incorreto de pronomes é frequente. “É mais fácil errarem meus pronomes do que acertarem, não importa a roupa ou a maquiagem”, diz. Embora afirme ter segurança sobre sua identidade, ela reconhece o desgaste emocional causado por essas situações.
“No final do dia, a gente acaba se perguntando quem é, mesmo sabendo que a identidade não depende da validação externa”, afirma de forma solene.
CORPO SÃO, MENTE SÃ
A disforia de gênero é caracterizada pelo intenso desconforto ou angústia vivenciados quando a identidade de gênero de uma pessoa não corresponde ao sexo que lhe foi atribuído ao nascer. Esse mal-estar pode se manifestar como insatisfação com o próprio corpo, com papéis sociais impostos e com a forma como a pessoa é reconhecida socialmente, gerando ansiedade, depressão e sofrimento psicológico significativo.
A compreensão desse cenário vem sendo aprofundada por uma pesquisa pioneira da Unifesspa, intitulada “Estresse de minoria em pessoas trans e não-binárias”. Coordenado pelo professor Caio Maximino, do curso de Psicologia, o estudo reuniu dados coletados entre novembro de 2024 e janeiro de 2025, por meio de questionários online, com a participação de estudantes trans e não-binários, inclusive bolsistas de ações afirmativas. Os resultados, divulgados em 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans, apontam níveis substancialmente elevados de sofrimento psicológico entre pessoas trans e não-binárias, evidenciando o impacto direto da discriminação e da exclusão social.
O estudo revela que pessoas trans e não-binárias evitam com mais frequência determinados locais ou situações por medo de retaliação. Entre pessoas transgênero, a chance de evitar esses espaços é 23,1 vezes maior do que entre pessoas cis; entre pessoas não-binárias, o risco é 5,7 vezes maior. O relatório reforça que essas dificuldades não decorrem de fragilidades individuais, mas do peso concreto da transfobia, do estigma e da marginalização social.
Essa realidade dialoga diretamente com a vivência de Amaya, que relata que a disforia esteve mais presente no início de seu processo de transição. Com o tempo, ela passou a construir uma relação mais cuidadosa com o próprio corpo.
“Ele é o que vai estar comigo até o final. É o que me permite me expressar”, afirma. Embora reconheça que as pressões estéticas ainda existem, Amaya avalia que hoje a disforia tem um impacto menor em sua vida. E, ao opinar sobre o atendimento em saúde mental para a população trans em Marabá, ela aponta que o principal problema não é a falta de profissionais, mas o acesso.
“Não adianta ter profissional se a pessoa não consegue sair de casa, não tem dinheiro para transporte ou tem medo de ser violentada”, pontua. Segundo ela, muitas pessoas trans vivem em situação de desemprego ou informalidade, o que dificulta até o acesso a serviços gratuitos.
ALÉM DA CIDADE
Olhando para além do contexto urbano, Amaya chama atenção para a realidade de pessoas trans que vivem fora dos centros das cidades amazônicas. “Quando a gente fala de pessoas trans na Amazônia, não é só a imagem urbana. Existem pessoas trans indígenas, ribeirinhas, quilombolas”. Para ela, quanto maior o isolamento geográfico, mais intensas são as desigualdades no acesso à educação, saúde e trabalho. Situações que impactam diretamente na saúde mental dessas pessoas.
Essa reflexão é apontada por Amaya ao citar estudos recentes sobre o tema: “Saúde mental não é só psicologia ou psiquiatria. É direitos humanos, é acesso à saúde, é ter o básico para existir”. Ela ressalta que, em um contexto de desigualdade, a falta de renda, moradia e alimentação inviabiliza qualquer cuidado psicológico contínuo.
Segundo Amaya, muitas pessoas trans são expulsas de casa ainda na adolescência e acabam encontrando na prostituição uma das poucas alternativas de sobrevivência. “Não é uma escolha livre. É o que sobra quando não houve acesso à escola, apoio familiar ou oportunidades”. Nessas condições, buscar atendimento em saúde mental deixa de ser prioridade diante da urgência de sobreviver.
Por isso, para ela, discutir saúde mental de pessoas trans na Amazônia exige compreender uma série de recortes sobrepostos. “Antes de pensar em identidade ou transição, muita gente está preocupada se vai ser expulsa de casa ou se vai ter o que comer”. Amaya reforça que a violência e o sofrimento não são inerentes a ser trans, mas consequência de uma sociedade desigual e excludente.
Hoje, ela afirma conseguir viver sua identidade com mais autonomia. Ainda assim, destaca que a luta continua sendo pelo básico. Para Amaya, dar visibilidade a essas experiências é essencial para questionar ausências e romper o apagamento social, histórico e acadêmico que ainda marca a vida de pessoas trans, especialmente na Amazônia.
“Ser trans é maravilhoso quando você consegue viver com verdade, trabalhar, estudar, ter seus documentos em dia”.

