Correio de Carajás

Em cartas a Papai Noel, crianças pedem brinquedos para ‘proteção’ contra tiros e ajuda para irmão baleado

Cartas foram entregues na campanha de Natal dos Correios e podem ser adotadas por quem quiser presentear as crianças. Para especialistas, os pedidos expressam mais do que desejos comuns: expõem como a violência impacta a infância.

Os irmãos Thalia (de saia rosa), Adrian e Andressa Sophia. — Foto: Arquivo pessoal

Era 7 de setembro quando o futuro de Adrian mudou para sempre. Hoje, aos 12 anos, ele vive com limitações causadas pela bala perdida que atingiu sua medula quando ainda era bebê. “Ele estava com o pai quando um rapaz foi executado na rua. Eles correram, mas o tiro acabou pegando no meu filho”, conta Natalie.

Para a mãe, ainda é difícil aceitar o que aconteceu. Adrian, por sua vez, prefere não tocar no assunto. No dia a dia, ele e a irmã Thalia reinventam brincadeiras: “Ele joga bola sentado, usa as mãos, e ela fica ao lado. É assim que se divertem”, diz Natalie.

A cadeira de rodas automática que Thalia pediu ao Papai Noel — e que a família não tem como comprar — é hoje o grande desejo do menino.

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‘Um dinossauro, porque tenho medo’

 

Distante de Lauro de Freitas, em uma favela do Rio de Janeiro, Pietro e Gabriel, ambos com 6 anos, também escreveram suas cartinhas para o Papai Noel. Eles queriam brinquedos que lhes protegessem dos tiros que ouvem.

As crianças estudam na mesma escola e ainda não sabem escrever. Por isso, a professora fez as cartinhas com o que elas pediram.

“Gostaria de ganhar um dinossauro, porque tenho medo de ficar sozinho quando dá tiro na minha rua. Se não puder, pode ser um urso. Quero um amigo”, disse Pietro.

Pietro quer um dinossauro de presente do Papai Noel — Foto: Reprodução
Pietro quer um dinossauro de presente do Papai Noel — Foto: Reprodução

“Eu gostaria de pedir um urso para dormir comigo, porque eu tenho muito medo quando dá tiro na minha casa. Fico deitado no chão. Preciso do meu urso para me proteger. Se não puder, pode trazer uma mochila para eu estudar”, disse Gabriel.

Contexto de violência afeta presente e futuro das crianças

 

O Natal sempre trouxe a Gabriela David Correia da Silva, hoje com 23 anos, a lembrança mais dolorosa da infância: a ausência do pai. Thiago da Costa Correia da Silva foi morto aos 19 anos, junto com outros três jovens, por policiais no Borel, no Rio, em 2003. Gabriela tinha apenas um ano.

“Nas festas de Dia dos Pais na escola eu tentava disfarçar, mas doía muito. Coisas pequenas viravam enormes pra uma criança lidar sozinha”, diz.

Estudante de pedagogia, ela enxerga na própria história como a violência molda a infância na periferia. “Crescemos cercados por medo, falta de oportunidade e violência. É como se a infância fosse encurtada.”

Para Victoria Lidiana, educadora popular e idealizadora do Coletivo OCICLO, a desigualdade limita o direito a uma infância plena.

“Precisamos nos perguntar se é possível um desenvolvimento psicossocial digno em espaços historicamente vistos como ameaça. São seres humanos em formação, irreversivelmente afetados por uma gestão da vida que atribui irrelevância a determinados corpos e territórios”, afirma.

 

Ana Claudia Cifali, do Instituto Alana, reforça que proteger a infância em territórios violentos exige rever práticas de segurança pública. “Áreas com grande circulação de pessoas não podem ser cenários de operações policiais. O direito de crianças e adolescentes não pode ser colocado em risco”, diz.

Ela lembra que a violência cotidiana — de operações policiais a tiroteios que fecham escolas — fere diretamente o direito à educação e à proteção.

Para Eduardo Ribeiro, da Rede de Observatórios de Segurança, os pedidos feitos por crianças revelam a busca por algo básico: proteção.