Correio de Carajás

Livro que mapeia 1.003 assassinatos no campo será lançado em Marabá

Obra documenta massacres, mortes de lideranças e a invisibilidade de ‘peões’ escravizados no estado

José Batista iniciou a organização do livro em meados de 2019; em 2020 Airton se uniu ao projeto/Foto: Evangelista Rocha
Por: Luciana Araújo

“Lembrar para não esquecer, relembrar para não repetir”. A frase, usada para resgatar memórias de eventos históricos importantes no Brasil, traduz a relevância do livro ‘Assassinatos e impunidade no campo no Pará – 1980 a 2024’. O levantamento é assinado por José Batista Gonçalves Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em parceria com Airton dos Reis Pereira, professor doutor da Universidade do Estado do Pará (UEPA).

O livro será lançado nesta quarta-feira (3), no auditório da Unidade 1 da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), na Folha 31, a partir das 19 horas. O evento é uma iniciativa da CPT em parceria com a universidade, por meio do curso mestrado de História (Mestrado de História e do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA).

Nas páginas que serão apresentadas ao público, estão documentadas as histórias de 1.003 assassinatos de trabalhadores rurais no Pará. A publicação funciona como um dossiê que expõe de forma crua a violência e a impunidade sistêmica dos crimes no campo. Além disso, a obra, por si só, é uma robusta fonte de pesquisa para estudantes e sociedade em geral entenderem a dimensão da barbárie agrária no estado.

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“Números são frios, matemáticos. Mas, quando a gente fala de 1.003 assassinatos, eram 1.003 vidas. Pessoas, muitas delas casadas, com filhos, que tinham o sonho de conquistar a terra e foram privadas disso repentinamente. São histórias, intenções e projetos. No caso das lideranças, por exemplo, havia por trás um projeto político, sindical ou de vida religiosa. Portanto, isso representa muito mais do que apenas dados”, reflete José Batista em entrevista ao Correio de Carajás.

É esse resgate da memória que guia a estrutura da publicação. Dividido em quatro capítulos principais, o livro carrega ainda textos analíticos e testemunhais de pessoas envolvidas na luta camponesa da região. Nomes como Francisco Jaci Solidariedade da Costa, sindicalista histórico da Fetagri, e Ayala, militante do MST na região. Também contribuem Luzia Canuto (filha de João Canuto, morto em Rio Maria nos anos 80, e que também perdeu irmãos e o ex-marido para a violência no campo), e Ana Souza Pinto, conhecida como Aninha, que atuou por anos na Secretaria de Segurança. O grupo inclui ainda Emanuel “Mano” Wambergue, defensor de direitos humanos bastante conhecido no município, com uma trajetória de 10 anos na CPT.

O texto inicia com uma análise sobre o contexto da concentração de terra e a impunidade como causas geradoras da violência. Na sequência, o capítulo 1 aborda os assassinatos de 445 trabalhadores rurais, que inclui camponeses, indígenas, quilombolas, ribeiros e assentados que não se enquadram nas outras categorias específicas.

O capítulo 2 foca nas lideranças sindicais, comunitárias, advogados e religiosos, como a Irmã Dorothy e o Padre Josimo. Já o 3 relaciona as chacinas e massacres, registrando 59 casos que resultaram em 315 mortes.

Por sua vez, o 4º e último capítulo carrega as histórias de pões, ou seja, trabalhadores de fazendas que foram assassinados em conflitos trabalhistas ou em situações de trabalho escravo.

José Batista: “São 1.003 assassinatos de pessoas que tinham o sonho de conquistar a terra e foram privadas disso repentinamente” /Foto: Evangelista Rocha

IMPUNIDADE, DO LATIM “IMPUNITAS”

“A impunidade é uma das principais causas da continuidade da violência, e está associada ao problema da concentração da terra. Aqui, as pessoas ou estavam na luta para conquistar ou para defender a terra conquistada. Embora existam casos de trabalho escravo e conflitos com madeireiros, a maioria absoluta dos crimes envolve a disputa pela posse. A concentração fundiária é, portanto, uma causa extremamente relevante para a questão da violência”, analisa José Batista.

A obra é contundente ao expor a falta de punição ao longo desses 45 anos. O cenário revela um verdadeiro funil de injustiça: dos 1.003 assassinatos, menos da metade (459) teve qualquer registro de investigação. Desses, apenas 309 inquéritos foram instaurados e somente 61 casos chegaram a julgamento. A geografia da impunidade também assusta: dos 85 municípios com mortes registradas, em 51 a taxa de impunidade é absoluta, ou seja, de 100%.

Outro número alarmante é a quantidade de assassinatos de autoria direta das Polícias Militar e Civil, como os massacres de Eldorado do Carajás e Pau D’arco. Foram 107 casos registrados no livro. E, das 59 chacinas, apenas cinco foram julgadas.

VÍTIMAS E GEOGRAFIA DA VIOLÊNCIA

“Xinguara é o município com maior número de assassinatos, mas é preciso entender o contexto geográfico. Muitos ocorreram na região de São Geraldo do Araguaia, que, na época, era distrito de Xinguara ou, anteriormente, de Conceição do Araguaia. Como precisamos respeitar a divisão política do momento do crime, essas mortes inflaram as estatísticas dos municípios-mãe. Conceição, por exemplo, contabiliza muitos casos da década de 80 justamente por abranger territórios que hoje são outros municípios”, explica Airton.

Por trás da estatística dos 1.003 assassinatos esconde-se um dado ainda mais cruel: o apagamento da identidade das vítimas. Segundo a pesquisa da CPT e UEPA, 245 pessoas (quase um quarto do total) foram enterradas sem nome.

O levantamento feito por José Batista e Airton apurou que a maioria absoluta eram “peões” vítimas de trabalho escravo. Migrantes vindos do Maranhão, Piauí e Tocantins, eles chegavam ao Pará sozinhos e sem documentação. No ambiente de trabalho, eram chamados apenas por apelidos que remetiam à sua origem, como “Ceará” ou “Piauí”.

Quando assassinados, a estratégia dos criminosos era apagar qualquer rastro. Muitos corpos foram queimados, desfigurados ou ocultados para impedir a identificação, como no caso macabro em que oito ossadas foram descobertas em um poço após a denúncia de um fugitivo.

Essa prática de ocultação de cadáveres não só apagava identidades, mas servia como garantia final para a impunidade que o livro busca denunciar.

Airton explica que Xinguara é o município com maior concentração de assassinatos/Foto: Evangelista Rocha

POR DENTRO DOS DADOS

Dos 1.003 assassinatos no Pará, entre 1980 e 2024, apenas 459 resultaram em 309 inquéritos policiais ou ações penais e 54,24% dos assassinatos não foram apurados. Dos 309 inquéritos e processos apenas 61, ou seja, 19,74%, foram julgados. Houve a condenação de apenas 15 mandantes, outros 15 foram absolvidos. Entre os executores, 42 foram sentenciados e 4 intermediários.

Um total de 205 executores e 4 intermediários foram absolvidos, entre eles 17 policiais militares que participaram do assassinato de Quintino Lira e 142 policiais militares que participaram do Massacre de Eldorado do Carajás.

Dos casos investigados, em 61 deles os inquéritos e as ações penais foram arquivados por insuficiência de provas ou por ter ocorrido a prescrição dos crimes. 107 mortes tem a autoria da polícia militar e civil; dos 1.003, cerca de 245 corpos não foram identificados.

Dos 85 municípios em que houve registro de assassinatos no campo, no Pará, apenas 34 não possuem taxa de 100% de impunidade nos últimos 45 anos. O município de São Félix do Xingu, com 69 assassinatos, não teve ainda um único crime definitivamente julgado: impunidade de 100%. Santana do Araguaia, com 44, e Paragominas, com 36, 100% impunidade. Xinguara, com 148 assassinatos, e Conceição do Araguaia, com 68, apenas três casos julgados, mas, em todos, os acusados foram absolvidos: também impunidade 100%.

Com relação as mortes de lideranças, 137 delas foram assassinadas no Pará entre 1980 e 2024, sendo: entre 1980 e 1989: 23 lideranças; entre 1990 e 1999: 21; entre 2000 e 2009: 43; entre 2010 e 2019: 44; entre 2020 e 2024: 6 lideranças.

Embora 1985 seja o ano em que mais houve assassinatos de lideranças (9 mortes), as duas últimas décadas superaram e muito as anteriores, com um total 87 lideranças assassinadas, com destaque para 2005 (7 mortes), 2006 (8 mortes), 2011 (7 mortes), 2017 (8 mortes) e 2018 (8 mortes).

O massacre de Eldorado do Carajás é o maior já registrado no Pará/Foto: Sebastião Salgado

Dos 137 assassinatos de lideranças, apenas 108 tiveram inquéritos ou processos abertos. Outros não há informações. Dos 137 assassinatos, somente 27 casos foram a julgamento.

O livro também contabiliza 59 casos de chacinas e massacres, com um total de 317 mortes. O número representa 31,61% dos assassinatos de camponeses, peões e lideranças no campo, no estado, ao longo de 45 anos. Desses 59, cerca de 73% dos casos foram de camponeses, com destaque para a categoria posseiros, com 203 mortes, e 18 casos foram de peões: 114 peões assassinados, representando 35,96% das mortes em chacinas e massacres no período. Dos 18 casos, 12 são relacionados diretamente ao trabalho escravo, sendo 67% do total de chacinas de peões.

Das 153 vítimas nas chacinas e massacres, 48,26%, foram registradas como “não identificadas”. Entre elas, 63 são camponeses, com destaque para os posseiros, e 90 são mortes de peões.

Do total das 59 chacinas e massacres, com 317 assassinatos, 76,96% dos casos e 82,65% das mortes ocorreram no sul e sudeste do Pará. Dos 317 assassinatos, em 59 casos, apenas 27 inquéritos ou processos foram instaurados. Apenas 7 casos foram a julgamento.

A pesquisa também levantou que 227 peões foram assassinados no Pará. Desse total, 114 foram em chacinas e massacres, representando 52,22% do total das mortes de peões. Dos 227, apenas 25 casos têm inquéritos ou processos e em apenas 2 (8%) ocorreram julgamento dos executores dos crimes. Ou seja, em apenas 8% dos casos ocorreu o julgamento.

A impunidade em relação aos mandantes dos crimes é de 100%: nenhum foi julgado e condenado. Se considerarmos o número total de vítimas e o número relacionado aos 2 casos julgados (cinco peões), a taxa de impunidade é de 97,80%.