Correio de Carajás

Na aldeia, celular é ferramenta de resistência e de memória

Pelas lentes dos jovens comunicadores, a cultura do povo Gavião é compartilhada através das redes sociais/ Fotos: Evangelista Rocha
Por: Kauã Fhillipe
✏️ Atualizado em 06/11/2025 11h34

Entre cantos e sussurros da natureza que cercam as aldeias da Terra Indígena Mãe Maria, em Bom Jesus do Tocantins – a menos de 10 Km de Marabá, um grupo de jovens do povo Gavião enxergou a oportunidade de potencializar suas vozes e tradições por meio das lentes de celulares, mostrando ao mundo que a cultura nativa nunca esteve tão viva. Assim nasceu o coletivo Mídia Gavião.

A equipe do CORREIO passou um dia com o grupo e vivenciou de perto essa experiência etnográfica e imersiva: uma rede de comunicação própria onde tradição e tecnologia caminham lado a lado – nas aldeias e nas telas. A Mídia Gavião surge para contar suas histórias a partir de dentro, rompendo com a narrativa histórica em que a imprensa convencional registra o indígena sob um olhar “de fora”. Ali, as câmeras são ferramentas de resistência contra estigmas e transformam registros em território e identidade.

Kaiti Topramre, da aldeia Mêpotoprinakatêjê, sintetiza esse movimento. Fotógrafo, estudante de Artes Visuais na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e um dos idealizadores do coletivo, ele explica que a iniciativa se fortaleceu em 2021, na Marcha das Mulheres em Brasília. A partir dali, os jovens comunicadores da TI Mãe Maria decidiram que era necessário registrar e divulgar a vida e a realidade do povo Gavião. Não apenas para mostrar tradições e festas, mas para ocupar o espaço digital como território de afirmação.

Leia mais:
Kaiti: “ os registros das tradições indígenas funcionam como resgates culturais dos nossos antepassados para os mais novos e para os não-indígenas”.

Autonomia comunicacional

Para Kaiti, o papel do coletivo em eventos e reuniões reforça que o povo Gavião é autônomo na construção de suas narrativas e reivindicações.

“A gente tá aqui também para mostrar nossas guerras diárias. Quando tem alguma reivindicação, estamos ali pra mostrar o que tá acontecendo e como é a realidade”, explica. Enquanto a grande imprensa ainda recai em retratos superficiais, a Mídia Gavião produz a partir da vivência, traduzindo imagem, emoção e pertencimento.

Segundo o portal Terras Indígenas no Brasil, a TI Mãe Maria abriga mais de 1.300 indígenas dos povos Akrãtikatêjê, Kykatejê e Parkatêjê, espalhados em mais de 30 aldeias. São inúmeras histórias a serem contadas, e a Mídia Gavião busca mostrar o cotidiano, os ritos e a cultura que boa parte dos não-indígenas desconhece. “A gente sente. A gente sabe exatamente o que vive”, reforça Kaiti.

Aldeia conectada

Com o avanço tecnológico, praticamente todas as aldeias da TI Mãe Maria criaram perfis próprios nas redes. A Mídia Gavião tornou-se referência e inspiração para outras aldeias produzirem conteúdo. Nem todas contam com um integrante do coletivo, mas isso não impede que parcerias sejam formadas. Uma comunicação interligada que vai além de uma simples colaboração.

Nas mãos dos jovens Gavião, o celular deixou de ser símbolo de “ocidentalização” para se tornar ferramenta política, educativa e cultural. Rituais, assembleias, paralisações e celebrações percorrem o digital, conectando o local ao global.

Hipeiti Janhapa Topramre, responsável pela comunicação na aldeia Krījõhêré, reforça esse protagonismo juvenil. “Nosso trabalho mostra que existem comunicadores indígenas de qualidade e que nosso material chega longe. É gratificante levar o nome do meu povo”, diz.

A aldeia Krījõhêré, parceira da Mídia Gavião, também realizam trabalhos de comunicação independente.

Organização e bastidores

O coletivo funciona como uma pequena redação: sete integrantes que atuam de forma voluntária, revezando entre captação, edição, textos e publicações. “Tem quem faz texto, quem publica, quem grava stories. A gente é um pouco de tudo”, conta Kaiti. A equipe do CORREIO acompanhou essa rotina durante os Jogos Estudantis Culturais, na aldeia Krījõhêré, onde cada função é pensada com cuidado, pois “a gente leva o nome do povo Gavião”.

Comunicação de resistência e futuro

A Mídia Gavião planeja se formalizar como associação para acessar editais e fortalecer o trabalho indígena. O Governo Federal oferece programas específicos, como o Prêmio Mre Gavião. Uma homenagem a Kumreiti Cardoso Kiné, fotógrafo, fundador do coletivo e referência da comunicação indígena, falecido em maio de 2025. Sua memória ecoa como inspiração e força ancestral.

Comunicação, memória e continuidade

Para o povo Gavião, comunicar é reexistir. Cada registro é uma herança para as próximas gerações. Nenhuma decisão é tomada sem o aval dos mais velhos, princípio que reforça o respeito à ancestralidade.

O cacique Xapramti Kuwexere, da aldeia Hakti Jokri, destaca: “Muita gente entrava na comunidade e não entendia nossos costumes. Agora, vendo pela Mídia, passam a compreender nossa cultura”. Ele ainda ressalta que a tecnologia atraí visibilidade e respeito que as comunidades não-indígena têm ao povo Gavião, pois a partir desses conceitos, “ela vão entrar na aldeia com um olhar diferente, com uma visão de como é que elas devem se comportar dentro de uma comunidade indígena”.

O cacique Xapramti Kuwexere avalia positivamente o trabalho da Mídia, afirmando que através dela o povo Gavião ganha visibilidade e respeito.

Além da estética

Janaína Jokrepoyre, da tradicional aldeia Parkatêjê, lembra que a Mídia Gavião combate o racismo e reposiciona o indígena no centro da história. “Não é porque eu uso celular pra mostrar minha cultura que deixo de ser indígena. Ser indígena vai além da estética”, afirma.

Janaína: “Nosso trabalho serve para mostrar nossa cultura que vai além das aldeias. Ao mesmo tempo que vamos postando nossa realidade, nós vamos criando memórias para as futuras gerações”.

Janaína, que tem funções nas redes sociais na Mídia, lembra que o seu povo em encontros não tinha tanto espaço como tem agora com a propagação do trabalho feito por eles e que hoje, usa o espaço virtual para promover não só a comunicação indígena, mas também a identidade e a cultura de todo povo Gavião por onde passar.

A fotografia como flecha

A lente de Kaiti revela risos, corpos pintados, cantos em assembleias e poeira de festa. Cada imagem rebate o preconceito do “índio de celular”. O celular, agora, é arco e flecha digital: aponta pro preconceito e mira no futuro. “A gente mostra o que sente. Só a gente sabe o que passa.”

Além disso, o coletivo realiza parcerias com outras instituições quando solicitado, sempre priorizando fortalecer a voz indígena. Kaiti também participará da COP 30 representando a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), onde fará cobertura do evento com olhar próprio, levando a Mídia Gavião consigo e dando visibilidade global às pautas do território.

Tradição e modernidade se unem no povo Gavião ao contarem as próprias narrativas

MÍDIA GAVIÃO EM NÚMEROS

11.000 seguidores no Instagram

32 aldeias para cobertura

7 profissionais em atuação

4 anos de atividade