📅 Publicado em 27/10/2025 10h06✏️ Atualizado em 27/10/2025 17h57
Era mais um dia de plantão do perito criminal Augusto Andrade. Dessa vez, ele tinha sido chamado para coletar evidências em uma residência no município de São Domingos do Araguaia, região sudeste do estado do Pará. No local, o corpo de uma mulher tinha sido encontrado e a suspeita era de morte natural. Chegando lá, algo chamou a atenção do perito. “Havia muitas moscas. Mais do que deveriam”, disse. Para Augusto, que tem a experiência de anos recolhendo evidências em locais de crime no interior do estado, isso significava uma coisa: “Algum ferimento havia sido aberto ali”, disse ele.

As moscas eram os vestígios
O laudo científico foi encaminhado para a Polícia Civil, que junto a outras evidências passou investigar o caso como homicídio. Essa não foi a primeira vez que esses insetos ajudaram Augusto em uma investigação. Em outras sete cenas de crime, as moscas foram fundamentais em determinar o chamado “Intervalo Post Mortem” (IPM) – uma estimativa sobre quanto tempo uma pessoa foi morta, dado essencial nas investigações criminais. Em um dos casos, o perito chegou a coletar ovos de moscas que estavam em um cadáver e os levou para a Polícia Científica de Marabá, onde analisou o tempo em que se desenvolviam. “As moscas têm um ciclo de vida de dias. Então dependendo do estágio em que a mosca está no corpo, se larvas ou os ovos, a gente pode dizer há quanto tempo um cadáver está ali”, diz.
Leia mais:Augusto explica que esse tipo de dado torna o laudo mais técnico, auxiliando a Polícia Civil, caso eles já tenham um suspeito ou uma linha de investigação. “A Polícia Civil pode comparar com o que eles já apuraram. Por exemplo, se uma pessoa está mentindo ou não sobre determinada informação, ou se a evidência é convergente com aquela linha já adotada”, disse.

Entomologia Forense
Contar com insetos como ‘microinvestigadores’ não é uma novidade nem na perícia e nem na ciência. A entomologia forense (entomo – inseto; logia – estudo) aplica o estudo dos insetos e outros artrópodes a procedimentos legais, auxiliando nas investigações criminais. O primeiro registro disto está em um manual de medicina chinês, datado do século XIII, que relata a investigação de um homicídio.
“Um dia alguém observou uma pessoa assassinada e suspeitavam de um determinado aldeão. Foram lá na casa dele e acharam uma foice com sangue e vermes, indicando que aquela tinha sido a arma do crime. A partir disso começa-se o estudo da entomologia. Esses bichinhos aqui seriam, digamos assim, os nossos aliados para descobrir quem é o criminoso, as circunstâncias e o local do crime”, explica o professor Danilo Oliveira, entomologista e docente na Universidade do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).
No Brasil, os primeiros registros de insetos auxiliando em investigações estão datados de 1908. Mesmo assim, estudos na área ainda carecem de investimentos. Além de essenciais para os ecossistemas, o professor explica que alguns insetos também são capazes de fornecer dados que vão desde as circunstâncias do crime e o local em que o crime ocorreu, até a identificação do criminoso. “Essa observação torna possível responder algumas perguntas e ajuda a entender como foi a morte, qual que foi a causa, o local onde isso aconteceu. E aí a gente tem algumas espécies que nos ajudam muito assim, e que se destacam”, diz.
Entre os principais insetos de importância forense estão as moscas, os besouros e até borboletas. Danilo explica que, quando há um corpo morto, os dípteros, ou seja, as moscas, são os primeiros a chegar.
“As moscas depositam ovos no cadáver. Esses ovos eclodem em larvas. Essas larvas vão crescendo em etapas e essas etapas têm duração específica. É nesse tempo de ‘crescimento’ que estão os dados da investigação”, explica o professor.
Por exemplo, se em um cadáver é coletada uma larva de uma espécie cujo ciclo de desenvolvimento demora 10 dias, e após a coleta a larva demora 5 dias para se desenvolver, isto significa que os outros 5 dias ocorreram antes do corpo ser encontrado. Com isso é possível saber a duração de cada etapa e calcular o intervalo pós-morte, ou seja, uma estimativa de quanto tempo aquela pessoa morreu. “Mas essa é uma estimativa que também depende das condições do ambiente, localização, clima”, diz.
Ciência na Amazônia
Danilo Oliveira é um dos docentes do Programa de Pós-Graduação em Ciência Forenses, o primeiro mestrado profissional dessa área na Amazônia. A Unifesspa oferta o curso desde 2021. “É pioneiro e o único do Brasil nesse tema”, explica a coordenadora do curso, professora Fernanda Ferreira. Os trabalhos resultantes do curso incluem projetos sobre crimes ambientais, drogas, danos ao patrimônio, crimes virtuais etc.
O objetivo agora é aumentar a nota do programa e investir na proposta de um curso de doutorado em Ciências Forenses. “É uma forma de mostrar que, mesmo no interior da Amazônia, produzimos ciência. Nós somos capazes de produzir ciências assim como outras regiões do país. Por que não ajudar a nossa própria região a crescer, a fomentar a pesquisa aqui?”, completa.
No curso, além da dissertação, os alunos são incentivados a criar um produto forense, que possa auxiliar na prática o trabalho de órgãos como a Polícia Científica e Ministério Público. “Também pedimos a avaliação de um perito, que valida aquele produto para ver se ele realmente tem eficácia. Não adianta produzir ciência se ninguém vai utilizar. Então a gente faz esses produtos e entrega nas instituições”, diz.
Um desses produtos está sendo feito por Célia Rivera Puma, biotecnóloga equatoriana que veio ao Pará somente para fazer o curso, que ainda não existe no Equador. “A maioria das pesquisas de entomologia forense são feitas na região sul e sudeste do Brasil. No Norte ainda são muito escassas e, especialmente aqui na Amazônia, não tem muita informação dos dípteros forenses ou outras espécies de interesse forense”, diz.

Célia está levantando quais dessas espécies de moscas são exclusivas da cidade de Marabá e está construindo um catálogo para ajudar nessa identificação. Para isso ela fez armadilhas artesanais com carne moída, que depositou em garrafas pet. As armadilhas foram distribuídas em dez pontos da cidade. Oito foram em zonas urbanas e dois na Mata do Tauari e do Parque Zoobotânico. Após 48 horas foi feita a coleta das armadilhas e a identificação de cada uma delas.
No total, foram coletadas mais de 6 mil moscas, de 114 espécies diferentes. “Duas dessas espécies não têm registro prévio relacionados ao campo forense”, explica a pesquisadora. Com a pesquisa, também foi verificado que há moscas específicas das áreas de mata em Marabá. Esses dados ajudam a identificar, inclusive, se um cadáver foi apenas deixado em um local, mas morto em outro.
“Se temos uma espécie A, que só está presente na floresta, e temos uma espécie B, que só está presente na zona urbana, o que aconteceria se um corpo que foi encontrado na floresta tivesse a espécie B? Isso seria uma evidência forense de que houve deslocamento do corpo”, acrescenta Célia.
Ela diz que as moscas conseguem sentir o cheiro de um cadáver a 15 quilômetros de distância. “Elas também que possuem uma reprodução muito rápida: “Dependendo da espécie, chegam à fase adulta em 10 ou 15 dias”, diz.
Célia explica que também é possível fazer análises físico-químicas nesses insetos, e descobrir, por exemplo, se uma pessoa morreu envenenada ou não. “Tudo que nós ingerimos fica em nosso corpo. Então, se uma pessoa morre por intoxicação ou envenenamento, essas toxinas permanecem no corpo. Os insetos, neste caso, se alimentam do corpo. Então, as toxinas que estavam no cadáver vão passar aos insetos”, explica.
Além de análises toxicológicas, já existem estudos ao redor do mundo sobre identificação de autoria do crime por meio do DNA obtido do sangue ingerido por insetos hematófagos, assim como na detecção de drogas, venenos, medicamentos e metais pesados. Danilo Oliveira, que orienta a pesquisa de Célia, explica que esse tipo de pesquisa é muito importante na região Norte, onde há uma grande porcentagem de casos sem solução, principalmente de homicídios.
“Muitos casos deixam de ser resolvidos justamente pela falta de evidências complementares. Estudos como esse aqui abrem todo um novo leque de possibilidades para fornecimento de novas evidências. Portanto, é algo muito importante para a perícia científica, para a Polícia Civil, Polícia Federal e para o aumento da taxa de crimes solucionados”, explica o professor.
A Unidade Regional da Polícia Científica do Estado do Pará em Marabá atendeu 550 ocorrências de Crime Contra a Vida, só em 2024. Danielle Cartaxo, perita coordenadora da unidade, acredita que a entomologia pode ser útil não apenas na identificação do intervalo post-mortem.
“Quando a gente fala na perícia criminal, a primeira coisa que se pensa é no local de crime contra a vida. Nós somos a ponta de todo o processo de pesquisa dentro das ciências forenses. Sabemos que já existem algumas pesquisas que investigam se esses insetos também podem absorver substâncias psicoativas no organismo de uma pessoa que veio à morte. É muito enriquecedor para uma investigação criminal, porque também pode determinar se a vítima estava sob efeito de alguma substância no momento da morte”, diz.

Segundo Cartaxo, substâncias psicoativas podem diminuir o poder de defesa de uma vítima. “E isso entra como agravante no Código de Defesa Penal e precisa ser julgado como”, alerta. Ela questiona se outros tipos de crimes, como os de violência sexual, também poderiam ser solucionados a partir do uso de insetos. “Será que aqueles insetos que estão ali em uma vítima que foi violentada antes da morte podem também absorver algum tipo de material genético de um abusador? São perguntas bem interessantes e acredito que essas pesquisas podem nos auxiliar a responder isso. A gente precisa compreender como os insetos podem nos ajudar cada vez mais”, diz.
A unidade de Marabá, que atende outros 35 municípios do sul e sudeste do Pará (incluindo as zonas rurais), espera por um novo concurso para admissão de peritos. Cartaxo diz que a entrada de mais profissionais e a possibilidade de um laboratório para estudo desses insetos tornaria o trabalho mais robusto.
“Se nós temos mais policiais militares, nós precisamos de mais policiais civis. Se nós temos mais policiais civis, nós precisamos de mais peritos criminais. Consequentemente, quando isso vai para a justiça, nós vamos precisar também de mais promotores, porque vão ser mais processos e assim por diante. É fundamental pensar na segurança pública como um sistema integrado. Porque no final das contas é isso que vai garantir o máximo de justiça possível”, diz a coordenadora.
Bioindicadores de crimes ambientais
E não é só em crimes contra a vida humana que os insetos conseguem ajudar. Em crimes contra o meio ambiente eles também são essenciais para comprovar o nível do dano que se cometeu à natureza.
A Lei de Crimes Ambientais nº 9.605/1998 foi criada para inibir práticas criminosas que ameacem o meio ambiente. Mas a ausência de métricas capazes de mensurar o grau de impacto na biodiversidade dificulta a aplicação das responsabilizações. “No seu artigo 6º, a Lei diz que a penalidade para o infrator é condicionada à intensidade, ou seja, à gravidade do impacto. O juiz precisa ter dados sobre qual intensidade de um determinado crime ambiental, para então prescrever a penalidade desse para o infrator. Como mensurar isso? Insetos bioindicadores”, explica Danilo Oliveira.
Há insetos que ajudam a avaliar desde a qualidade da água, indicando se a água está limpa ou poluída, e insetos cuja presença em excesso, ou ausência, indicam graves danos florestais. “Tradicionalmente em todo o mundo, temos uma série de grupos que são conhecidamente bioindicadores para questões específicas. Os cupins, por exemplo, são ótimos indicadores porque eles são extremamente importantes em ambientes florestais. São eles os grandes decompositores, que vão modificar tudo que está morrendo e transformar isso em adubo para as plantas. São eles que fecham o ciclo de nutrientes”, explica o professor.
Foram justamente cupins e formigas que ajudaram a bióloga Tatiana Menezes a calcular o dano causado no Parque Nacional dos Campos Ferruginosos (PARNACF), unidade de conservação do Mosaico de Carajás. O Mosaico cobre cinco municípios do sudeste paraense em aproximadamente 1,2 milhões de hectares e sete áreas de conservação.
Olhando de cima, a imagem por satélite mostra uma enorme massa verde de mata preservada. Mas foi entrando na floresta que o crime ambiental se revelou. No Parque, a copa de árvores centenárias foi usada para camuflar blocos inteiros de áreas desmatadas, abertos entre as árvores para extração de madeira ilegal.
O Instituto Chico Mendes (ICMBio), responsável pela área, gerou um auto de infração contra os culpados. Mas como qualificar um dano em vítimas que não conseguem depor? “São conceitos difíceis de analisar, mas a gente tem que iniciar, tem que começar, tem que gerar dados, tem que começar estudos. E a fauna do solo é muito importante, pois ela nos dá dados rápidos e eficientes para fazermos essas análises”, diz Tatiana.

A abordagem, ainda considerada nova nos estudos forenses, foi o ponto de partida para a pesquisa da bióloga. Ela avaliou o grau de impacto da infração por desmatamento, utilizando a fauna do solo como bioindicador. “Formigas e cupins conseguem dar uma resposta rápida e são insetos que ocupam todo e qualquer ecossistema”, explica. “Quando a gente trata de infrações ambientais, você tem aspectos quantitativos que são notórios, mas os aspectos qualitativos são bem subjetivos”, acrescenta Tatiana.
Para avaliar o grau de impacto nesse ato de infração, foram feitas coletas de insetos em locais diferentes, em área preservada na Reserva Biológica do Tapirapé e na área desmatada, no PARNACF. No total foram coletados 7.879 organismos do solo, sendo destes 5.566 na área preservada e 2.313 coletados na área desmatada. A abundância de cupins e formigas na área preservada foi de 1.959 e 1.902, enquanto na área desmatada foi de 695 e 1.139, respectivamente.
“Se você tem uma redução do número desses organismos naquelas áreas desmatadas e consegue comparar elas com áreas que foram preservadas, isso nos dá dados muito importantes. De imediato, você já sabe que tem uma diminuição daqueles indivíduos naquele lugar”, afirma. “Os insetos nos fornecem dados sobre como é que aquele solo está sendo estruturado, o microclima daquela região, toda essa questão geomorfológica daquela área”, diz.
A pesquisa resultou em uma metodologia de coleta e análise, que pode ser usada por órgãos ambientais e poder judiciário para identificar o grau de comprometimento de áreas atingidas por crimes ambientais. “A Fauna de solo é um excelente indicador ambiental. Ampliar o olhar da entomologia forense, de crimes contra a vida, para também utilizá-la na perícia ambiental pode gerar dados extremamente factíveis, acessíveis, de baixo custo e confiáveis”, afirma a bióloga.
Esse já é o segundo trabalho com bioindicadores que Tatiana realiza. O primeiro foi em uma área de mineração, cujo proprietário do local insistia em dizer que a área estava intocada há anos “Eu falei que não era possível, porque só consegui coletar formiga. O bom de trabalhar com fauna de solo é isso, porque em um quadradinho você encontra aranha, formiga, escorpião, várias espécies. Ou seja, naquele local indicado tinha que ter mais diversidade”, diz.
Para o professor Danilo Oliveira, ainda há muito a valorizar e descobrir sobre o potencial dos insetos para o planeta. “A utilização de bioindicadores para resolução de perguntas específicas como essas na área forense nunca foram tão importantes quanto agora nesse cenário de emergência climática. A regulação da qualidade do solo vai impactar na biomassa de plantas, que vai impactar na assimilação de carbono, na temperatura, na umidade e ciclo de chuva. É toda uma cadeia social”, diz.
Ele diz que se pegássemos todos os seres humanos que existem no planeta e colocássemos em uma balança, teríamos em torno de 60 milhões de toneladas. “Só a quantidade total de formigas é mais do que esse valor. Cupins seriam outras 50 milhões de toneladas. Somando apenas esses dois grupos temos mais que toda a biomassa de seres humanos que existem no planeta”, diz.
E lembra que a cada 10 espécies que existem no mundo, em torno de seis ou sete são espécies de insetos. “O mundo é um grande insetário”, afirma o professor. “Quando a gente fala de inseto, a gente está falando do grosso da biodiversidade do planeta. Nós é que somos exceção. O mundo é só um, e é dos insetos”, finaliza.
