Pesquisadores brasileiros estão trabalhando para baratear um dos tratamentos mais promissores — e caros — da oncologia mundial. A terapia celular CAR-T, que utiliza células do próprio paciente modificadas em laboratório para atacar o câncer, pode custar até R$ 3 milhões por pessoa no setor privado.
A técnica, que modifica geneticamente células de defesa do próprio paciente para que reconheçam e destruam tumores, já é usada comercialmente no exterior — e em casos pontuais no país —, mas ainda esbarra em altos custos e limitações de infraestrutura para se tornar amplamente disponível no Sistema Único de Saúde (SUS).
Hoje, esse é um dos tratamentos mais caros disponíveis porque toda a tecnologia é importada e paga em dólar. Agora, pesquisadores brasileiros estão trabalhando para que o país tenha autonomia na técnica e que a terapia fique disponível no SUS e na rede particular. A meta é tornar o tratamento 80% mais barato.
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O que é a terapia CAR-T?
A sigla CAR-T vem de Chimeric Antigen Receptor T-cell (Célula T receptora de antígeno quimérico, em tradução livre). A técnica consiste em coletar linfócitos T (células do sistema imune) do paciente, modificá-los geneticamente em laboratório para que reconheçam um alvo específico no tumor — geralmente o CD-19, presente em leucemias e linfomas —, e reintroduzi-los no organismo.
Esses “linfócitos reprogramados” passam a atacar as células doentes como um exército vivo.
“É uma droga viva. A célula modificada continua agindo por muito tempo. Há pacientes tratados há mais de dez anos com as células ainda ativas”, explica o imunologista Martin Bonamino, chefe do Programa de Imunoterapia Celular e Gênica do Instituto Nacional do Câncer (INCA).
Como funciona hoje no Brasil?
O tratamento com CAR-T já está aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para alguns tipos de leucemias, linfomas e mieloma múltiplo.
Pacientes que recebem o tratamento com produtos comerciais — oferecidos por três farmacêuticas — precisam recorrer à Justiça para que os planos de saúde cubram o valor, que pode ultrapassar R$ 3 milhões.
Atualmente, as células são colhidas no Brasil, enviadas para fábricas nos Estados Unidos ou Europa, modificadas e congeladas, e só então retornam para aplicação — um processo que pode levar mais de 40 dias. “Essa espera é inviável para muitos pacientes em estado avançado”, alerta Bonamino.
O avanço da produção nacional
Para reduzir custos e agilizar o tratamento, diferentes centros brasileiros estão desenvolvendo terapias CAR-T 100% nacionais. Um dos projetos mais avançados é liderado pelo Hemocentro de Ribeirão Preto, em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Butantan.
Segundo Rodrigo Calado, presidente do Hemocentro, o grupo já iniciou um estudo clínico de fase 1/2 com 81 pacientes.
“Tratamos 20 pacientes em uso compassivo, com resultados semelhantes aos oferecidos por produtos internacionais”, diz. A meta agora é concluir os testes para obter o registro da Anvisa. Com apoio de R$ 100 milhões do Ministério da Saúde, a expectativa é oferecer o tratamento ao SUS por 10% a 15% do valor cobrado atualmente no mercado privado.
Outros centros também estão na corrida, como o Hospital Israelita Albert Einstein, que já trata pacientes com células fabricadas no próprio hospital, e o INCA, que está estruturando laboratórios em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para viabilizar a produção em larga escala.
Os desafios técnicos
A fabricação das células CAR-T exige ambientes altamente controlados, com salas limpas, filtros de ar e processos de assepsia rigorosos. “É mais parecido com a produção de um medicamento do que com um procedimento hospitalar”, resume Bonamino.
Outro gargalo é a produção dos vetores virais usados para inserir o gene modificador nos linfócitos. Na maior parte das CAR-T, é um vírus que ‘direciona’ a célula modificada até o tumor.
“Hoje, esses vírus são comprados de fora e custam até US$ 1,2 milhão por lote”, afirma o pesquisador. Para driblar essa dependência, a Fiocruz pretende adaptar a fábrica usada na pandemia para produzir vacinas de vetor viral e fabricar os insumos localmente.
O hemocentro de Ribeirão Preto conseguiu nacionalizar também esse processo, sendo o único entre os estudos que executa do início ao fim da produção no Brasil.
No INCA, também está em andamento o desenvolvimento de uma alternativa sem o uso de vírus, utilizando apenas fragmentos de DNA para inserir a modificação genética nas células.
Efeitos colaterais e riscos
Apesar do potencial revolucionário, a terapia CAR-T não está isenta de efeitos colaterais. Um dos principais é a “síndrome de liberação de citocinas”, uma inflamação aguda que pode causar febre, pressão baixa e, em casos mais graves, neurotoxicidade.
“Por isso, os pacientes precisam estar internados ou muito próximos a centros com UTI disponível”, explica Bonamino. “Mas sabemos manejar bem esses eventos, que geralmente são transitórios.”
Além disso, como a terapia elimina células B normais junto com as doentes, os pacientes podem ficar temporariamente imunossuprimidos e precisar de reposição de imunoglobulina.
O futuro da CAR-T no Brasil
A expectativa dos pesquisadores é que os estudos sejam concluídos em 2026, inicialmente em pacientes com leucemia linfoblástica B e linfoma difuso de grandes células B, que falharam em ao menos duas linhas de tratamento.
Estudos também estão sendo planejados para outras doenças autoimunes, como lúpus. “Já conseguimos controlar toda a cadeia de produção no Brasil, da fabricação do vetor à aplicação no paciente”, diz Calado. “Nosso objetivo é oferecer essa terapia ao SUS com qualidade e custo viável.”
Bonamino destaca que o avanço não é só clínico, mas estratégico: “Estamos construindo capacidade tecnológica, científica e industrial no Brasil. Isso nos dá autonomia e reduz a dependência de insumos internacionais.”
🧬 O que é preciso para a CAR-T virar realidade no SUS?
- Conclusão dos estudos clínicos nacionais com aprovação da Anvisa
- Produção local dos vetores virais ou alternativas sem vírus
- Infraestrutura laboratorial adequada em hospitais públicos
- Incorporação da tecnologia via Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS)
- Apoio contínuo de políticas públicas e financiamento federal
📌 Como participar dos estudos?
A participação em estudos clínicos deve ser solicitada pelo médico que acompanha o paciente junto ao centro de pesquisa.
(Fonte:G1)