A notícia chegou com estrondo: a partir de 1º de agosto, todos os produtos brasileiros exportados aos Estados Unidos passarão a pagar 50% de tarifa. Uma pancada que atinge carnes, café, aço, aviões e uma fatia significativa da nossa balança comercial. No noticiário, a justificativa parece um enredo tropical: Donald Trump teria se irritado com decisões do STF sobre Jair Bolsonaro, além de críticas do governo brasileiro a gigantes como Google e Meta. A história circula como se fosse mais um capítulo da polarização doméstica, cuja guerra moral aparece como causa única.
Mas não é isso. Não mesmo.
O Brasil está pagando não pela sua política, mas por estar no lugar errado da história, ou, talvez, no lugar certo demais. Essa taxação não é um castigo ao lulismo, nem um afago ao bolsonarismo. É, sobretudo, uma tentativa de estancar a sangria do dólar. O que está em curso é uma guerra de moedas, e o Brasil virou campo de batalha.
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Em pronunciamento em 8 de julho, Trump afirmou que os países do BRICS “vão pagar um alto preço” por tentarem “destruir o dólar”, comparando a perda do status da moeda ao fracasso em uma guerra (ver aqui: Trump: países do BRICS vão ‘pagar’ por tentar destruir o dólar | O Dia +). Mais: anunciou tarifas adicionais de 10% a todos que se aliarem ao bloco, reforçando que “o dólar é rei” e será defendido “como se fosse uma grande guerra” (ver aqui: Trump alerta que países do Brics sofrerão consequências por atacar o dólar).
Donald Trump, novamente presidente, sabe que os Estados Unidos já não dominam o mundo como antes. A China avança com tecnologia, semicondutores e carros elétricos acessíveis, como os da BYD, enquanto constrói sua própria infraestrutura financeira, espacial e digital. Rússia e Índia começam a operar fora do dólar, e os países do BRICS desafiam o comando unívoco da moeda americana.
O pano de fundo da tarifa de 50% sobre as exportações brasileiras não está nos embates políticos locais, mas na lenta e estrutural erosão da supremacia do dólar. Em dados do FMI para o primeiro trimestre de 2025, a participação do dólar nas reservas internacionais caiu para 57,7%, contra mais de 71% em 2000. No sistema SWIFT, que processa pagamentos internacionais em dólar, esta moeda representou 50,2% das transações em janeiro de 2025, ante cerca de 60% no início dos anos 2000. O euro manteve-se relativamente estável (cerca de 20,1% nas reservas e 21% nos pagamentos), enquanto o yuan chinês alcançou 4,3% das transações SWIFT (ver aqui: Trump culpa Brics por dólar mais fraco, mas ele mesmo pode ser a maior ameaça, dizem analistas). O franco suíço, símbolo de confiança em tempos de crise, subiu para 0,8% das reservas, seu maior nível desde 1999 (ver aqui: Trump volta a ameaçar Brics dizendo que vai impor tarifa de 10% a qualquer país que estiver no bloco | Mundo | cbn).
Comparativo da Participação das Moedas — 2000 vs. 2025
Indicador | 2000 | 2025 (1º tri) | Variação |
Reservas internacionais (USD) | 71,5% | 57,7% | ↓ 13,8 p.p. |
Reservas (Euro) | ~18% | 20,1% | ↑ 2,1 p.p. |
Reservas (Franco Suíço) | 0,3% | 0,8% | ↑ |
Outras moedas (ex. CAD, AUD) | 1,2% | ~11,4% | ↑ 10 p.p. |
Transações globais (USD) | ~60% | 50,2% | ↓ cerca de 10 p.p. |
Transações (Euro) | ~30% | ~21% | ↓ |
Transações (Yuan – CNY) | ~0% | 4,3% | ↑ expressivo |
Este declínio não é apenas estatístico, ele representa a fragilidade de uma ordem econômica baseada no monopólio cambial. E quando essa ordem se vê ameaçada, os mecanismos de coerção se voltam contra aqueles que ousam traçar novos caminhos. O Brasil, ao defender relações comerciais mais plurais, discutir moedas alternativas e buscar autonomia tecnológica, passou a representar um risco simbólico. Por isso, agora, paga a conta de um sistema em crise.
A guerra tarifária é só o verniz. O que Trump está tentando fazer é preservar, à força, um modelo que desmorona. Porque, sem o dólar no centro, os Estados Unidos perdem não só prestígio, mas sua máquina de poder: a capacidade de imprimir moeda, por meio de dívida pública, e ver o mundo inteiro obedecer. E como se sustenta uma hegemonia cambaleante? Punindo quem ameaça. Mesmo que o Brasil não tenha feito nada além de tentar construir alguma soberania.
A pergunta inevitável é: por que o Brasil?
Entre todos os países dos BRICS, somos o alvo mais vulnerável: menor que a China e a Rússia, mas suficientemente influente para inspirar um caminho alternativo. A China, alvo de tarifas massivas que feriram o mercado americano; a Rússia, o país mais embargado do mundo, atualmente; a Índia, mantendo um jogo dúbio. Restou ao Brasil, o país que sob Lula defende soberania com firmeza, sustentar o baque.
Nesse cenário, chama atenção o comportamento de parte dos políticos e da classe empresarial brasileira que, mesmo diante de um ataque explícito aos interesses nacionais, segue defendendo Trump e sua agenda como se ela fosse benéfica ao país. É o velho complexo de vira-lata disfarçado de pragmatismo, o mesmo que bate continência para bandeiras estrangeiras enquanto vê as exportações brasileiras serem esmagadas por tarifas. Defender uma política externa que penaliza o Brasil em nome da manutenção do dólar não é só ingenuidade, é antipatriotismo. É ajoelhar-se perante o carrasco e ainda agradecer pela chibata.
Lula reagiu com firmeza, citando a Lei de Reciprocidade Econômica, aprovada pelo Congresso. Mas é uma reação que joga no campo jurídico um conflito que é, essencialmente, estrutural. Não se trata de responder com a mesma moeda, mas de entender que a moeda em jogo já não é mais a mesma. O dólar está sendo desafiado e quando o império cambaleia, as bordas do mundo tremem primeiro.
No mesmo dia em que o Brasil era tarifado, os Estados Unidos anunciaram um alívio temporário para as tarifas sobre a China. Não por gentileza, mas por necessidade. Precisam do consumo chinês, dos componentes, dos mercados, dos bens de consumo durável, como notebooks. A China é grande demais para ser ignorada. O Brasil, ao contrário, é suficientemente importante para ser punido, mas pequeno o bastante para não gerar retaliação de risco.
A história cobrará de nós a clareza de perceber que o que está em jogo não é Bolsonaro, nem Google, nem mesmo Lula. É a ordem monetária global que está em transformação. E quem quiser sobreviver a essa travessia precisa entender que o futuro será cada vez menos dolarizado e que, até lá, as feridas do dólar ainda farão muitas vítimas.
Hoje, o Brasil virou uma delas. E há quem bata palmas.
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.